A evidência surgiu há alguns anos: o melhor que se produz na indústria cinematográfica norte-americana não se destina às salas dominadas pelo ruído das pipocas e da coca-cola, mas para o consumo doméstico através dos canais de televisão por cabo. Provêm deles as melhores obras de ficção.
Se a melhor série do ano está já escolhida - «Olive Kitteridge» com Frances McDormand no papel principal - vimos neste fim-de-semana os derradeiros episódios de outras duas, merecidamente colocadas no pódio: «The Knick» e «Fargo».
Quer uma, quer outra, viram agora concluídas as respetivas segundas temporadas e, ao contrário por exemplo de «House of Cards» em que se verificara uma queda abrupta na sua qualidade, ambas superaram-na em relação ao que se passara no ano anterior.
«The Knick» é um projeto de Steven Soderbergh, que se cansou das grandes produções de Hollywood e das cerimónias dos Óscares e verteu para o pequeno ecrã a história de um hospital nova-iorquino no início do século, onde as práticas médicas suscitam muitas cenas impressionantes, mas não se contentando com esse lado mais óbvio.
Através de múltiplos personagens, Soderbergh revela os atuais cancros da sociedade norte-americana desde a falta de escrúpulos dos capitalistas até à corrupção dos que lhes facilitam a maximização dos lucros, do racismo ordinário até ao entusiasmo pelo eugenismo na classe médica, da hipocrisia dos pastores evangélicos ultraconservadores, mas com comprometedores vícios privados, até à questão das dependências, quer do álcool, quer das drogas.
Clive Owen, no papel do Dr. John Thackery, tem aqui um desempenho como nunca lhe víramos nos cinemas. Alternando grandes sucessos médicos com dolorosos fracassos, acaba vitimado pelo seu arrojo, morrendo na operação em que decidira executar ele mesmo a cirurgia aos tumores intestinais, de que padecia, apenas para comprovar uma tese científica desmentida por tal fracasso.
«Fargo» é uma série completamente diferente, porque nos atira para a lógica das comédias negras dos irmãos Coen, que produziram o projeto.
A história começa quando uma esteticista do Minnesota atropela um gangster, que acabara de matar três pessoas num restaurante e, ferido, viera para a estrada, encadeado pelas luzes de um ovni.
O que seria um acidente banal vai-se converter numa acumulação progressiva de homicídios, porque Peggy tornara-se numa involuntária variável no conflito entre dois gangs rivais pela posse do mesmo território.
Estendendo-se aos estados vizinhos dos dois Dakotas, a história vai acompanhando dois xerifes impotentes perante os massacres, que vão testemunhando e a capacidade de sobrevivência daquela personagem feminina, com uma filosofia de vida contraída nos livros e seminários de autoajuda.
Kirsten Dunst é deliciosa nesse desempenho de uma personagem sem a consciência de como os seus gestos anódinos conduzem a grandes tragédias (pelo caminho irá causar indiretamente a morte do próprio marido), mas há também um conjunto de atores excelentes na caracterização de alguns estereótipos ao nível do que de melhor os célebres irmãos criaram para o cinema ianque.
Os vinte episódios das duas séries (dez por cada uma) garantiram-nos uns mil minutos de enorme prazer ao revelarem-se exemplos lapidares de entretenimentos inteligentes.
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