De todos os livros, que li este ano, - e foram muitos! - «Mulheres de Cinza» de Mia Couto é indiscutivelmente a escolha para o de Melhor do Ano.
Primeiro título da trilogia «As Areias do Imperador», tem duas personagens principais: a adolescente Imani, que vive em Nkokolani, uma pequena povoação nas margens do rio Inharrime e vê com grande apreensão a chegada das hordas invasoras do imperador Ngungunyane, lestos em roubar as colheitas do seu povo e violar-lhe as mulheres e as raparigas.
Ela também servirá de criada ao sargento Germano de Melo, um republicano condenado à deportação depois da insurreição de 31 de janeiro de 1891, e enviado para aquela região do sul de Moçambique, como forma de ali dar prova da presença portuguesa.
Quando o romance decorre está-se em 1895 e os colonizadores brancos não mostram capacidade para conter, quanto mais superar, o ímpeto belicista dos invasores nguni. E nada no romance deixa transparecer o facto de, em dezembro desse mesmo ano, Mouzinho de Albuquerque ter conseguido vencer a batalha de Chaimite, fazendo prisioneiro esse mesmo Ngungunyane.
Pelo contrário Mouzinho é frequentemente citado como uma espécie de D. Sebastião, com existência concreta (ou imaginada?) numa manhã de nevoeiro.
O romance vai evoluindo a dois ritmos nas suas quatrocentas páginas: por um lado lemos as longas cartas de Germano ao conselheiro José d’Almeida, que é a sua quase exclusiva ligação com o poder colonial, não imaginando ser afinal lido por Aires d’Ornelas, que vê como inimigo político; por outro temos as perspetiva de Imani, por quem vamos conhecendo as peculiaridades do seu povo, que começa por ver de forma distanciada, já que fora educada numa missão religiosa, mas com quem se irá identificar progressivamente.
Pelo olhar da rapariga vamos testemunhar o medo dos aldeões ao verem vagas sucessivas de invasores ameaçarem as suas terras, sem que consigam a paz necessária para semearem e colherem os frutos do seu labor no tempo adequado para tal. Conhecemos a passividade de Katini, seu pai, que continua à espera da proteção dos portugueses e a lerdice do irmão Mwanatu, tão escrupuloso a servir de guarda-costas a Germano, como a quem a ele se opõe. Há também a valentia de outro irmão, Dubula, que decide juntar-se aos aparentes vencedores, mas acaba morto no campo de batalha, ou a insensatez de Musisi, o tio, que nunca chega a compreender a inocuidade das suas manifestações de rebeldia.
Sobra o avô Tsangatelo, que parte de Nkokolani e se vai enfiar terra adentro nas minas mais a sul. Quando dele se sabem notícias, compreende-se que tomou por amante outro homem, um tema-tabu que Mia Couto não enjeita tratar neste seu romance, em que se tornaram mais raros os neologismos, mas se manteve um certo realismo mágico bem patente quase no final, quando a terra começa a multiplicar as armas nela enterradas, sendo difícil cavar um palmo de terra para semear algo para comer e não se encontre um paiol pronto a usar.
A leitura de Mia Couto causa um enorme prazer, porque sentimo-nos frequentemente tentados a parar aqui e acolá para melhor apreciar o engenho com que traduziu em palavras a originalidade da história, burilando-as de forma a ganharem uma sonoridade bem percetível se optarmos por uma leitura em voz alta.
Acabado o primeiro volume da trilogia, pois que venham os outros dois...
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