Acabei de ver a segunda temporada da série «The Leftovers», que foi acumulando surpresas ao longo dos dez episódios, ao ponto de termos de reconhecer nessas sucessivas reviravoltas o seu maior interesse. Porque não é verdade que devemos preferir o que nos encantem, impressione ou inquiete?
Para quem nunca a viu o ponto de partida é este: a 14 de outubro milhares de pessoas desaparecem um pouco por todo o mundo como se se tivessem evaporado pelos ares. Enquanto os mais racionais procuram entender o que possa ter estado na origem de tão estranho fenómeno, que os terá privado dos seus entes mais queridos, começam a surgir seitas capazes de atraírem os mais frágeis. Uns convencem os seguidores da importância do abraço, outros dedicam-se à previsão do futuro de quem os consulta, mas a organização mais poderosa é a dos que se privam da palavra, vestem de branco e atuam como juízes morais dos que estão em dor.
Embora acompanhemos o percurso de muitos personagens, tendemos a privilegiar a empatia com o xerife da cidade de Mapleton, Kevin Garvey, que personifica o chefe de família desejoso de normalidade, mas assombrado pelas manifestações mais impressionantes do seu contrário: nesta segunda temporada morre sucessivamente, e outras tantas ressuscita, e a um vizinho, que o alvejara e confessa nada perceber do que está a viver, acaba por confessar a sensação de se sentir na mesma condição de ignorância.
Independentemente das derivações por onde as personagens se vão perdendo e reencontrando (dando às vezes a impressão da mesma deriva por parte dos argumentistas), a série é muito interessante para constatar as preocupações dominantes do presente imaginário norte-americano, já que o sucesso da série só pode condizer com o seu eco no mais íntimo dos seus milhões de espectadores: há o desejo profundo de salvaguardar a instituição familiar, muito embora ocorram no seu seio as maiores vilanias (a violação por exemplo), a facilidade com que se criam seitas religiosas por muito absurdas, que pareçam os seus fundamentos, a fragilidade coletiva perante fenómenos inexplicáveis da Natureza (os sucessivos terramotos, por exemplo), a tentação de cada um ser convidado a participar no espetáculo mediático e a facilidade com que a ordem social é destruída pelas hordas caóticas, que a conseguem profanar.
Em vez da América da solidariedade entre vizinhos, é a do cada um por si e contra todos, que acaba por sobressair, E essa é uma mensagem perturbadoramente conservadora por servir de alibi ao que de pior se vai processando no quotidiano da grande nação de Obama - as armas disponíveis para grande parte da população, a inexistência de propostas solidárias, que não passem pelas ilusórias crenças religiosas, e a infantilização suscitada pelos “milagres” e preconceitos , que conferem sustentabilidade a trapaças de lucro garantido.
No final temos o reconfortante happy end: depois de passar pelas mais vicissitudes mais surpreendentes, Garvey regressa a casa e reencontra a família recomposta e a prometer-lhe a almejada proteção...
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