Surpreendente a personalidade de Clärenore Stinnes, que só agora conheci através de um documentário de Kirsten Hoehne e Anja Kindler.
Filha de um dos principais industriais do vale do Ruhr, de quem fora o braço direito até à morte, vira-se desapossada da liderança do enorme conglomerado de empresas metalúrgicas e de transportes da família, que a própria mãe entregara à gestão dos irmãos mais novos. Como alternativa, decidiu virar as costas às convenções da época e iniciar uma fugaz carreira de piloto nas corridas de automóveis.
Foi com a experiencia desportiva de dezassete vitórias em outras tantas corridas, que congeminou a ideia de partir para a primeira volta ao mundo em automóvel, abarcando as grandes extensões asiáticas e americanas. Para tal conseguiu cem mil marcos de patrocínios e a companhia de dois mecânicos. E porque sabia de antemão só conseguir a prova de ter cumprido a aventura se dela fornecesse um documento cinematográfico, também contratou um operador de câmara sueco, Carl Axel, com quem acabaria casada no fim da aventura.
Em 1927, quando partiu, ainda era o cinema mudo o que prevalecia, mas ao regressar a casa, dois anos, depois os espectadores só apostavam no que fosse falado. Por isso mesmo o filme teve uma longa fase de montagem e de inserção de pós-sincronização sonora, que lhe possibilitou a estreia em 1931.
A esta distância de nove décadas podemos imaginar as vicissitudes que Clärenore teve de vencer com longas distâncias sem possibilidades de reabastecimento em combustível e sem estradas, que muito penalizaram a equipa, ao ponto de se reduzir a ela e a Carl Axel.
Pelo meio suportaram o inverno siberiano, atravessaram o lago Baikal gelado, o deserto do Gobi e a cordilheira dos Andes, onde aliás foram forçados a abrir passagem à custa de dinamite.
As realizadoras do documentário conseguiram encontrar fotografias e sequências filmadas nas várias fases desse périplo, alternando a sua apresentação com entrevistas dos familiares de Clärenore. Ela própria surge em alguns momentos de uma entrevista televisiva de 1986, quatro anos antes de morrer com noventa anos.
Acompanhamos, assim, os momentos de desespero ou de esgotamento físico, devidos às avarias e às dificuldades dos trilhos escolhidos, quando não mesmo perante as burocracias e as ameaças de bandidos um pouco por todo o lado. Mas também a consagração nos Estados Unidos, quando foi recebida por Henry Ford ou pelo presidente Hoover na Casa Branca.
O mais surpreendente terá sido a opção de vida de Clärenore e de Carl Axel depois de tão rica experiência: radicaram-se no sul da Suécia para se dedicarem à vida familiar e à sua exploração agrícola, sem voltarem a ser tentados pelo apelo ao conhecimento de novas paisagens...
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