O que ontem me valeu foi já ter garrafas de espumante a mais em casa, porque podia lá deixar em claro os muitos casamentos e nascimentos concretizados, ou em perspetiva, no derradeiro episódio de «Downton Abbey»?
O que verdadeiramente me chateia na série do conservadoríssimo Julian Fellowes - por isso mesmo deputado do partido de David Cameron na Câmara dos Comuns - é que corresponde àquele tipo de veneno, que fui ingerindo lentamente, sempre ciente da sua verdadeira natureza e lá fui acompanhando as dezenas de episódios agora concluídos.
Gostaria de me arrogar de uma sólida coerência, mas que se há-de-fazer quando nos mistificam tão bem aquilo que execramos? Por exemplo as instituições monárquicas tão incensadas numa história cheia de duques e de condes são o que de mais absurdo ainda constato no mundo atual: haver alguém que nasça logo no topo da escala social por razões genealógicas é algo, que só pode merecer o repúdio de um democrata. Daí o meu arreigado republicanismo. E, no entanto, em Londres, vi-me frequentemente na longa avenida entre o St. James Park e o Palácio de Westminster a ver o desfile dos guardas reais.
Numa lógica semelhante sou um ateu impenitente e, em Roma, não prescindi de visitar o Vaticano sob o alibi de ver, pelo menos uma vez na vida, a Capela Sistina.
Voltando a «Downton Abbey» há também a corroboração de uma velha quadra do nosso poeta Aleixo, que dizia ser preciso misturar qualquer coisa de verdade a uma mentira para que ela fosse segura e atingisse profundidade. Temos assim uma classe aristocrática com costumes pouco vitorianos na alcova.
É verdade que a moral imposta pela puritana rainha era uma enorme mistificação, porque não faltam dessa época os exemplos mais rocambolescos de gente da nobreza envolvida em escândalos sexuais, mas «Downton Abbey» suscita o êxito de audiências com os mesmos condimentos das telenovelas, multiplicando afinidades eletivas quase sempre no respeito pelas castas: os aristocratas vão para a cama com aristocratas, enquanto os criados permanecem maioritariamente cingidos a situações platónicas.
Para Fellowees a boa convivência entre patrões e empregados quase nunca passa pela cama: quando isso sucede, entre Sybil e o motorista Tom, rapidamente este é assimilado à família para se tornar num semi aristocrata mais ou menos tolerado entre os que mandam e os que são mandados.
Dirão os mais convictos defensores da série, que se sente nela o mundo a mudar, com o previsível abandono de todo aquele folclore do passado. Mas o intento do autor é óbvio: evocando o título de um velho programa da BBC ele procura criar uma nostalgia por aqueles «good old days»!
Quer tudo isto dizer que foi um tormento ver a série? Claro que não, tendo ela a qualidade de todas as séries inglesas e o portento de algumas interpretações como é o caso da sempre excelente Maggie Smith, cujas aparições suscitam invariavelmente um sorriso, quando não mesmo um riso desbragado.
Mas será estranho que quer ela, quer Penelope Wilton (que faz o papel da prima Isobel) confessem aos jornais nunca terem visto um episódio da série em que entram como atrizes? É que, elas próprias conotadas com a esquerda inglesa, não têm paciência para verem a triste figura a que se viram condicionadas para ganhar a vida...
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