Na terceira parte da abordagem ao filme que a Cinemateca exibirá na noite do próximo sábado, vale a pena nele enfatizar a importância da música. Ela é apresentada isenta de qualquer análise ou de comentário, como se se tratasse de manuscritos filmados, com os textos e a música a formarem um todo de uma tal limpidez, que muitos classificaram esta «Crónica» como “música gravada”.
O critico Francis Courtade descreveu-o assim em 1969: “mais uma provocação. Porque é mesmo essa a génese da conceção do filme, reduzido a uma sucessão de momentos musicais fotografados em planos fixos com a duração exata do tema e com um comentário monocórdico difícil de acompanhar feito de frases escritas num estilo que se tornou pouco familiar. No entanto a ‘Crónica’ é (…) um filme levado ao limite do seu conceito com a imagem fixa a desaparecer. Um filme impasse.”
Para Straub não se trata de multiplicar símbolos, mas de os suprimir para que se atinja a “evidência concreta” de que fala Francis Ponge. Porque o que mais impressiona no filme é ver a música tratada como um objeto, a exemplo do que um pedaço de sabão ou um copo de água eram matéria bastante para servirem de “objeto” do poema” de Ponge. A exemplo deste, Straub rejeita as solicitações das ideias, as grelhas de leitura, a explicitação. O que se decide filmar ou gravar deve bastar por si mesmo. E daí que tenha optado por construir o filme nos locais originais, com os sons ali conseguidos a possuírem a sua presença própria.
A música de Bach é abordada como um espaço a explorar. A reconstrução desse espaço permita ao filme existir como um objeto, uma escultura, uma coisa.
Estamos assim num outro nível da realidade, numa outra densidade do real, mas com o mesmo direito de existir do que o mundo à sua volta.
Straub sublinha com pertinência que, chegados ao final do filme, mal nos apercebemos tratar-se de Bach. Porque ele transformou-se num objeto com a ficção a fechar-se em si própria, a pretender-se impenetrável.
O filme rejeita assim as relações convencionais entre o real e a forma de o reproduzir. E Straub recusa igualmente o recurso a “efeitos” destinados a caricaturar a realidade, e tão intensivamente utilizados nas formas canónicas de cinema mais convencional. É nesse sentido que o filme pode chegar a irritar com a sua recusa da psicologia dos personagens e da narração tal qual se tornou habitual para os espectadores, mormente com a, quase tida como imprescindível, dramatização.
Aos «Cahiers du Cinema», Straub explicaria: “ainda que o nosso trabalho na criação do argumento tenha sobretudo consistido em apagar todas as intenções, posso dizer que, ao dactilografá-lo para os stencils a minha mulher concluiu que se trataria de um filme sobre a morte. Mas também (…) sobre um homem livre. (…) Bach é para mim um dos derradeiros personagens da história da cultura alemã, no qual ainda não ocorreu o divórcio entre o intelectual e o artista; não se encontra nele qualquer vestígio do romantismo alemão; não ocorre nele qualquer separação entre a inteligência, a arte e a vida, nem conflito entre a música ‘profana’ e ‘sagrada’ já que elas estavam no mesmo plano. Para mim, Bach foi a antítese de Goethe”.
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