Um dos bons exemplos do que deve ser o serviço público de televisão é o programa «O Povo que ainda Canta», que a RTP2 anda a apresentar.
Realizado por Tiago Pereira tem em mente o projeto de Michel Giacometti, que tanto fez, durante décadas a fio, pela preservação da música popular portuguesa.
Num episódio agora emitido reencontramos Adélia Garcia, uma cantadeira nada, criada e casada em Caçarelhos, já conhecida de um disco de Nè Ladeiras, e cuja memória prodigiosa conserva mais de uma centena de temas. Que vai sucessivamente entoando enquanto recorda esse passado difícil em que a agricultura mal conseguia assegurar a sobrevivência de quem dela tentava viver.
As canções substituíam, então, e com enorme vantagem, os antidepressivos de hoje, ajudando a tornar mais suportável o que era um verdadeiro inferno quotidiano.
E, se muitos temas refletem a mentalidade salazarenta dos «pobrezinhos, mas honrados», não deixa de ser interessantíssima a deteção da temática sexual, de forma implícita, mas com uma argúcia maliciosa. O adultério, por exemplo, constitui algo que não se conforma amiúde com os preceitos da Igreja. E ao ouvirmos essas canções acha-se muito mais graça do que a sordidez boçal dos quins barreiros de hoje e seus tenebrosos sucedâneos.
Mas não arrisquemos idealizar uma certa “arte de ser português”! Ainda esta manhã, ao sabor do zapping, fui parar a um daqueles programas de opinião pública tão useiros e vezeiros nas maiores barbaridades. E, no escasso minuto em que por ali passei, ouvi um suposto funcionário público nortenho com 59 anos a subestimar a importância da prevenção rodoviária - discutia-se o balanço trágico da «Operação Páscoa» - porquanto o «destino está marcado e não há como lhe fugir!».
Que importa a taxa de alcoolemia de quem conduz, o mau estado das estradas ou o pé demasiado pesado no acelerador, se o tal «destino» é que decide sobre a vida ou a morte de todos nós?
Muito oportunamente, e a propósito de outra tontice - a de aguiar branco a classificar de «felicidade» a coincidência de Manoel de Oliveira e Silva Lopes terem morrido no mesmo dia - o Daniel Oliveira recordava a frase notável de Einstein para quem só duas coisas eram infinitas: o universo (e mesmo esse ele não tinha a certeza!) e a estupidez humana.
O que se pode dizer de quem já está a chegar a seis décadas de vida e continua a acreditar em absurdos tão grotescos como o da predestinação de tudo quanto nos acontece, independentemente do que forem as nossas escolhas?
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