Célestine é a protagonista de «Journal d’une femme de chambre», que Octave Mirbeau começou por publicar em folhetim em 1892 e a que deu a forma de romance em 1900.
Convencida de que não existem maus empregos, mas maus patrões, ela ostenta um olhar insolente, que faz desconfiar a dona da agência de colocações a que recorre, mas se deixa convencer pela beleza do seu rosto e a elegância do corpo.
Se lhe falarem com respeito, ela revelar-se-á a mais dócil das criadas, a tudo disposta para agradar. Mas ai dos que lhe querem impor autoritariamente a vontade!
Contratada pela família Lanlaire, Célestine vê-se acossada entre o patrão decidido a possui-la e a patroa viperina e mesquinha. Sem falar de Joseph, o jardineiro que a impele ao ódio aos judeus.
Depois de Renoir e de Buñuel, Benoit Jacquot viu no romance o pretexto para tratar o passado como reflexo cruel dos nossos dias: a desigualdade entre os sexos, a brutalidade do mundo laboral, a tentação extremista dos mais desqualificados…
O filme, acabado de estrear em França, promete ser um dos mais interessantes deste ano.
Célestine é a jovem a contas com as vilezas do mundo em que vive. Objeto de desejo, mas não só. Personagem complexa, consegue ser, ao mesmo tempo, cínica e sedutora na sua energia, que ora a faz parecer perigosa, ora denuncia a sua fragilidade. Vide o exemplo da cena impressionante em que recebe a notícia da morte da mãe e se desfaz em lágrimas na demonstração do que é: uma órfã mal amada, sozinha no mundo.
Carrega o filme uma mensagem feminista? Assim o parece confirmar a personagem da cozinheira, sacrificada à libidinosidade do patrão.
No contexto bucólico da casa burguesa, a zona das criadas significa a antecâmara da prostituição com os contínuos assédios, senão mesmo abusos humilhantes de que são vítimas.
Constituída por muitas escadas a casa transforma-se num percurso de obstáculos onde Célestine é a besta de carga aflita para conseguir sequer respirar. Oportunidade para Jacquot escalpelizar os mecanismos da servidão: o sadismo como técnica de domesticação e de resignação das vítimas, compelidas a aceitar a sua “inferioridade”.
“É preciso que transportemos a servidão nas veias!” acaba por concluir Célestine ao falar com o aristocrata, que lhe suplica ver-se tratado pelo nome. Quanto ao antissemitismo do jardineiro, ele evoca os operários, que votam atualmente na Frente Nacional e detestam muito mais os estrangeiros do que o patrão por quem foram despedidos.
A sátira incide sobre os costumes ridículos dessa burguesia provinciana, que só aprecia os objetos em função de quanto custaram. A galeria grotesca dos personagens secundários tem um lado macabro acentuado pelo desempenho intencionalmente teatral dos atores e atrizes.
André Bazin classificava de “tragédia burlesca, nos confins da atrocidade e da farsa” à adaptação empreendida por Renoir. E ela ajusta-se bem a esta versão elegante e clássica de Benoit Jacquot, que evolui para um onirismo sombrio.
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