São diversos os paradoxos associados a E Tudo o Vento Levou, quer na versão do romance de Margaret Mitchell, quer na do filme que Victor Fleming assinou como realizador. Fará sentido que os equívocos do politicamente correto tenham forçado a HBO a retirar temporariamente o título do seu catálogo a pretexto da violação dos códigos de conduta antirracistas? Justificar-se-á a indignação das feministas pelo facto de, embora casados, Scarlett e Rhett viverem uma das mais significativas cenas do livro como inequívoca violação sexual?
Estas questões surgem-me a propósito da discussão sobre elas tidas por Luís Caetano com o editor da Relógio de Água, Francisco Vale, que publicou há pouco o romance em dois volumes e sobre ele falou no inestimável Ronda da Noite da Antena 2.
Sem prejuízo de se contextualizarem os aspetos mais evidentes da contradição com os valores em consolidação nas nossas sociedades - para isso servem as apresentações prévias das sessões cinematográficas ou os prefácios dos livros - ambas as obras merecem ser vistas ou lidas por quem queira apreciar um filme de excelente qualidade, que esteticamente quase não envelheceu, e um romance épico, que acaba por dar da protagonista uma imagem de determinação e coragem, que pode desmentir o ambíguo contentamento com a agressão sexual a que se submeteu.
Como em tudo na vida não se justifica alinhar pelo oito nem pelo oitenta, porque a virtude quase nunca está no meio, mas poder-se-á encontrá-la num sensato quartil mais próximo de um ou do outro lado.
Ademais outras perspetivas podem recolher-se dessa história. Por exemplo a de amanhã ser, de facto, um outro dia e nele se focarem esperanças de recomeços. Porque, mesmo para quem tem sido feliz ao longo de 45 anos de conjugalidade oficial (somar-se-á pelo menos outro na que não o era!) uma provação como a que, agora, eu e a Elza vivemos dá para sentir que desconhecíamos o quão jubilatórios eram de facto os nossos dias, mesmo banalizados por rotinas ou compromissos de circunstância. Daí a identificação com Scarlett de costas, ao crepúsculo, apostada em encontrar no futuro imediato a renovada força para recuperar a euforia da bem-aventurança.
Tomorrow is - de facto! - another day!
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