sábado, maio 22, 2021

«Almoço de Domingo»: um bom romance de José Luís Peixoto

 

Em condições normais Almoço de Domingo seria romance para ter sido lido em dois ou três dias tão envolvente é a sua leitura. Mas José Luís Peixoto, seu autor, ou Rui Nabeiro, o personagem principal, não têm culpa absolutamente nenhuma no facto de eu andar de cabeça desnorteada, senão mesmo perdida, com a situação por que passa atualmente a Elza.

Mais ainda, a renitência com que li as últimas cinquenta páginas - as da celebração do nonagésimo aniversário do dono da Delta Cafés -  talvez tenha sido condicionada pelo mesquinho propósito de não «partilhar» pela literatura um momento de grande alegria do ancião, rodeado por toda a família, quer dos viventes, quer dos que já há muito desapareceram, quando eu próprio desejaria vir a viver com a Elza algo de semelhante e sinto tão condicionada essa possibilidade ao não vê-la erradicar a encefalite, que lhe mantém memórias e pensamentos num persistente caos.

Agora que cheguei à última página considero acertada a decisão de Rui Nabeiro em ter aceite a proposta de José Luís Peixoto para lhe traçar a biografia em forma de romance. Sabemos bem o destino, que têm as montanhas de hagiografias das mais mediáticas personalidades, que podem merecer alguma atenção num prazo muito curto, mas depois veem esses relatos atirados para o lixo, ou, na melhor das hipóteses, para aquelas bancas de livros em segunda mão, vendidos a pataco.

Ao sujeitar-se a ser personagem do romance de José Luís Peixoto, Rui Nabeiro conhece merecida prevalência muito para além do seu desaparecimento final: muito bem escrito, o romance sempre figurará como título importante no conjunto da obra do autor, que continuará a ser lida durante décadas. Ora descrito na terceira pessoa, ora passando para a primeira nas evocações de tempos idos, Almoço de Domingo é mais do que o relato da vida de um homem  muito justamente admirado para além da vila natal: está nele o testemunho de sucessivas décadas de um país, que muito mudou desde os tempos difíceis dos fascismos em ambos os lados da fronteira até à atualidade prenhe de transformações, que já só podem ser conduzidas por quem de Nabeiro já pegou no testemunho e lhe assegurará a continuidade.

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