domingo, maio 09, 2021

Uma prodigiosa aula de filosofia de mais de três horas

 

Três horas e vinte minutos para ser exato. É quanto dura Malmkrog, a sexta longa-metragem de Cristi Puiu, que foi considerado um dos melhores filmes do ano passado.

À partida os temas das discussões intermináveis entre Nikolai, Ingrida, Edouard, Madeleine e Olga pouco interesse me merecem: a decadência dos ideais militaristas, as guerras justas ou as que o não são, a dialética entre o bem e o mal, a civilização ocidental como utopia superior perante a “barbárie” das suas periferias, a existência de Deus ou do Diabo com o Anticristo pelo meio. Para um assumido ateu essas discussões nenhum sentido fazem a não ser no desiderato para que tendem no final: a da finitude das vidas, que obriga crentes e não crentes a convergirem nas inquietações.

Puiu regressou a um filósofo russo da viragem do século XIX para o século XX - Vladimir Soloviov - que se inscreve no universo cultural de um Dostoievski, de um Tolstoi ou de um Tchekov, e olha para os tempos vindouros, os da consagração de novas ideias, com pessimismo e incerteza.

É aí que começa a explicar-se o fascínio, quase hipnótico, do filme, capaz de se deixar ver em tão longa extensão sem o mínimo enfado. Porque os convidados da alta sociedade, alojados na mansão de um general na Transilvânia, estão numa situação semelhante à dos nossos sucessivos confinamentos neste último ano.

Sem arriscarem ir ao exterior, quase sempre só espreitado pelas janelas, vão-se entretendo em prolongadas refeições, quase não dando pelos criados que os servem, e discutindo todas as hipóteses virando-as do direito e do avesso. A época tem semelhanças com a nossa: nesse final do século XIX não é preciso ser adivinho para compreender que se anunciam mudanças imprevisíveis, mesmo que os protagonistas não levem a imaginação à hipótese de pouco faltar para decrépitos impérios ruírem com fragor e muito sangue. Talvez seja essa sugestão de paralelismo entre esse passado e o nosso presente a explicar porque se torna tão fascinante uma obra, que rivaliza com o nosso Manoel Oliveira na escassez de planos (pouco mais de sessenta!) e de movimentos de câmara. Mas Malmkrog demonstra que não é incontornável a regra do cinema ser sobretudo ação. Porque os atores são irrepreensíveis e os diálogos de uma subtileza que surpreende até o menos metafísico dos seus espectadores. Reconheço que, há muito tempo, um filme não me deixava tão agradavelmente desconcertado. 

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