sábado, julho 25, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: «A Lua na Pista de Gelo de Orange Street» de Alice Munro

“Sam teve uma surpresa ao entrar na loja de miudezas de Callie. Esperava encontrar o espaço atravancado de artigos de mercearia, guloseimas e rolos de papel, um odor a bafio, quiçá decorações natalícias do ano anterior já descoradas. Em vez disso descobriu que o local estava essencialmente tomado por jogos de vídeo”. (pág. 135)
Este início do conto «A Lua na Pista de Gelo de Orange Street» remete para uma das características, que vou identificando na obra de Alice Munro: a falta de correspondência entre as conjeturas de um personagem e a realidade com que se confronta num contexto diverso ao que em tempos viveu no mesmo espaço.
Sam tem 69 anos, é viúvo e para em Gallagher no percurso para casa da filha na Pensilvânia. Pensionista endinheirado, vem reencontrar o passado, que ali determinara muito do que viera a ser.
Conhecera Callie quando ela tinha 19 anos e trabalhava na hospedaria Kernaghan, aonde ele e o primo Edgar se tinham alojado para frequentarem a escola comercial.
Devido ao corpo franzino Callie conseguia esgueirar-se pelo telhado da pista de gelo e aceder a uma porta nas traseiras por onde eles entravam para irem patinar à borla. No inverno repetiam essa aventura às segundas-feiras por ser o dia em que a patroa dela ia jogar bingo ao Legion Hall.
Numa dessas noites os rapazes violam Callie, que reage entre chateada e submissa.
Dias depois, temeroso de tê-la engravidado os rapazes decidem fugir para Toronto.
“Não era a primeira vez que Sam se sentia metido em sarilhos, mas das vezes anteriores ele sabia exatamente em que consistia esse sarilho e qual o castigo que o esperava e conseguia imaginar uma saída. Agora, sentia que  havia sarilhos  cuja extensão não conseguíamos abarcar, e cujo castigo era impossível prever.” (pág. 154)
Quando já se julgavam a salvo, com o comboio a despedir-se da estação de Gallagher, Sam e Edgar veem Callie, disfarçada de rapaz andrajoso, sentar-se a seu lado.
“Os três seguiram em frente, e (…) muita coisa aconteceu. Ele próprio sentiu, nesses  humilhantes e confusos primeiros dias em Toronto, que um lugar como aquele, uma grande cidade, com as suas estreitas e sombrias ruas da baixa, com os seus edifícios de decoração austera, e permanente movimento de pessoas e estrepitosos carros elétricos, podia ser o lugar certo para si. Um lugar para trabalhar e ganhar dinheiro.” (pág. 160)
Não tardaria que Callie e Edgar casassem e regressassem a casa da menina Kernaghan, que descobrira não poder viver sem eles. Ela nunca engravidara e vivia ainda com esse homem que, tendo sofrido um ataque há quatro anos, não saía defronte da televisão.
Passara-se meio século, mas Sam constata algo que o intriga: “ Aquele momento de felicidade partilhada permaneceu para sempre na mente de Sam, mas ele nunca chegou a compreendê-lo. Significarão tais momentos aquilo que aparentam - ou seja, que temos uma vida de felicidade, com a qual só nos cruzamos ocasionalmente e de forma consciente? Lançarão eles uma tal luz antes e depois que tudo o que aconteceu - ou que fizemos acontecer - nas nossas vidas pode ser dissolvido?” (pág. 162)
Nota: conto inserido na coletânea «O Progresso do Amor»,  Relógio de Água, 2011 

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