É tudo uma questão de maturidade: na volta dos vintes para os trintas abandonei o rock e o pop em proveito do jazz, e sobretudo, da música clássica. Das sonoridades anteriores restou-me o gosto pelas, inapropriadamente, chamadas músicas do mundo e por uma ou outra exceção mais digna de nota (Leonard Cohen, por exemplo).
Com o cinema a aproximação dos sessentas está-me a incrementar o gosto por rever filmes antigos, sejam os do grande cinema norte-americano dos anos 40 e 50, sejam os do cinema europeu do período do pós-guerra até aos finais dos anos 70.
Não abdicando de olhar para as novas produções tenho, porém, de reconhecer que não são muitas as que escapam à lógica de entretenimento para consumo de pipocas e coca-colas.
Vem tudo isto a respeito de ter revivido duas horas de fruição absoluta com «Morte em Veneza» de Luchino Visconti, não dando tanta importância à história, mas atentando nos movimentos de câmara de Pasquale de Santis ou na forma como a música, sobretudo retirada das Sinfonias nº 3 e 5 de Mahler, ganha estatuto de personagem omnipresente, mesmo que invisível.
À medida que revi as já bem conhecidas deambulações do professor Aschenbach entre as salas do Hotel des Bains do Lido e a respetiva praia, com uma ou outra surtida até ao labirinto, que tem na Praça de São Marcos um dos seus pontos de entrada, foi fácil concluir quanto já caíram em desuso as delongas com que Visconti faz evoluir a história. Há tempo para nos quedarmos nos olhares e no guarda-roupa dos personagens secundários, sem perdermos o fio condutor da progressiva obsessão do protagonista pelo efebo, que partilha os mesmos espaços em que se move.
Os acasos das escolhas quanto ao que vejo, fizeram-me ter tido no mesmo dia um episódio de uma excelente série do género fantástico (“Penny Dreadful”) em que um personagem define o amor como a busca de alguém por algo que o faça libertar-se. E é essa a melhor síntese para o enredo saído da imaginação de Thomas Mann: o professor Aschenbach obrigou-se a um tão restrito código de valores morais, que tal espartilho fê-lo falhar onde mais desejara ter sucesso: na composição musical.
O recalcamento dos estímulos dos sentidos conduziram-no a um beco sem saída, de onde apenas o deslumbramento pela beleza de Tazio o poderia emancipar. Mas é solução, que já lhe ocorre demasiado tarde. Até porque se vira entretanto apanhado na armadilha, que Veneza representa.
No filme de Visconti Veneza nada tem de magnífica ou de sereníssima. Logo na cena inicial, quando quer chegar ao Lido de vaporetto e não na gôndola que lhe coube tomar à saída do cais marítimo onde aportara, Aschenbach é confrontado com o carácter caprichoso da cidade: esqueça-se o domínio dos acontecimentos, porquanto é ela a impô-los a quem se condena a ser dela vítima. E por isso Aschenbach enleia-se progressivamente numa teia de que não se consegue livrar, porque a cólera asiática vai ceifando vítimas à sua volta, desertificando um espaço onde a sensação de clausura só não é maior, porque o adolescente vai imitando a Lolita de Nabokov na forma como o prende progressivamente aos seus inequívocos sinais de sedução.
No culminar do filme temos uma das mais belas cenas produzidas pelo cinema: a desfocagem gradual de Tazio enquanto entra nas águas ao som do «Adagietto». Nesse momento já a tinta com que Aschenbach procurara rejuvenescer-se vai escorrendo rosto abaixo, ao contrário do sangue entretanto estacado nas suas artérias.
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