quinta-feira, janeiro 28, 2021

(DIM) Ópera, Dario Argento, 1987

 


Sei que suscito alguma surpresa ao confessar-me apreciador de filmes de terror, mas os da lavra de Dario Argento são daqueles que justificam essa adesão por cuidarem dos cânones do género com apreciável virtuosismo. Os temas associados ao voyeurismo e ao sadomasoquismo remetem para obsessões do foro psiquiátrico, que sempre fascinam por incidirem nos recantos mais sombrios da mente humana. Ademais há movimentos de câmara, cenários ou bandas sonoras como não se encontram noutros realizadores associáveis ao mesmo tipo de filmes ou a quaisquer outros.

Outro aspeto peculiar na obra de Argento é a dimensão operática, essa forma de associar sons e imagens num espetáculo total capaz de oferecer um impressivo choque visual a quem a aprecia. Daí não se ter estranhado que, em 1985, e na sequência de um convite anteriormente endereçado a Ken Russell - também ele autor de obra singular e inigualável! - o Teatro Sferisterio de Maserata - o tenha desafiado para encenar o Rigoletto de Verdi.

A experiência correu mal e Argento foi despedido sem levar o projeto até ao desiderato concetualizado na sua mente. Este filme, realizado dois anos depois, constitui uma espécie de demonstração do que poderia ter sido tal produção se tivesse sido levada à cena,

Para melhor potenciar as linhas de força de toda a sua filmografia, Argento substitui o Rigoletto por outra ópera de Verdi, o Macbeth, explorando o rumor quanto a ser obra azarada para quem tem a desdita de a interpretar no palco. Que o diga a primeiro soprano do filme, essa caprichosa Mara Cecova, que alimenta grandes discussões com o encenador cujas opções contesta com assaz veemência. Mas logo sai de cena, envolvida num acidente que a recambia para o hospital.

Substitui-a a doce Betty, que pressente o quão impreparada está para corresponder ao desafio. Não fosse a insistência da agente e ninguém mais a convenceria a deixar-se dirigir por esse Marco em quem reconhecemos a condição de alter ego do próprio Argento. Se a voz depressa demonstra o acerto da escolha da nova protagonista os incidentes começam a envolver a preparação do espetáculo numa sucessão de incidentes técnicos com consequências mortais para as primeiras vítimas daquele que depressa se apercebe ser um serial killer focalizado na cantora. Porque, embora sempre disfarçado, dá-se-lhe a conhecer, quando a obriga a assistir aos crimes, que vai multiplicando, aplicando-lhe um dispositivo impeditivo de a deixar fechar os olhos enquanto, com requintes de sadismo, vai matando um rol crescente de vítimas.

Se a câmara coloca Betty no centro do olhar de todos quantos a rodeiam - dirigentes da Ópera, a agente, um inspetor da polícia, o encenador, o público, a vizinha - tardamos a identificar o assassino, transferindo as suspeitas para vários dos personagens só lhes ilibando as culpas ao darmos com eles a engrossarem o número dos que vão morrendo.

Argento tem o condão de nos transformar de voyeurs em participantes como se fôssemos mais um dos atores da história.

Começa a compreender-se que existe alguma relação entre os acontecimentos e um trauma vivenciado por Betty na infância. Opera evolui para uma trama psicanalítica em que os espaços do consciente, do subconsciente e do inconsciente se estratificam. Eros e Tanatos voltam aqui a interligarem-se como se fossem indissolúveis e o rosto de Betty, intimidado, frígido aquando das relações sexuais, assume a expressão da volúpia do desejo, quando aceita as partes sombrias de si mesma. Ao percorrer uma conduta de ventilação entre o seu apartamento e o da vizinha é como se ele fosse o corredor da casa da sua infância.

Compreende-se que Argento trabalha o olhar e o estatuto de quem vê. Inverte os pontos de vista, passa do campo para o contracampo e combina diversos planos subjetivos num só. Na mesa de montagem, quer a dos fotogramas, quer a da sonoplastia, o filme é (re)construído à medida dos efeitos necessários para potenciar os enquadramentos desfocados, os delirantes movimentos de câmara, os grandes planos, os dessincronismos e contrapontos sonoros. Argento preocupa-se em fazer com que cada cena supere a precedente em maestria.

E o final, apesar de aparentemente resolvido, existe a forte probabilidade de Betty continuar a sofrer os efeitos de um passado mal resolvido num tão sangrento presente. 

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