Na segunda-feira, dia 18 de janeiro, soubemos da morte de Jean-Pierre Bacri, um dos atores mais amados dos franceses. Tinha 69 anos e não resistiu ao cancro que o vitimou. Entre nós não ganhou a notoriedade de um Belmondo, de um Delon ou de um Dépardieu, mas mandam as evidências que o reconheçamos mais talentoso do que qualquer dos três. Em primeiro lugar, porque foi um homem de teatro, aliando o percurso de ator com o de autor de diversas peças levadas á cena. No cinema seguiu a mesma lógica, aliando a interpretação com a criação de argumentos para filmes de diversos realizadores, mas muito particularmente para Alain Resnais e Agnés Jaoui. Esta foi sua companheira entre 1987 e 2012 e, mesmo separados, nunca deixaram de se manter cúmplices nos diversos filmes, que continuaram a fazer juntos, quer como argumentistas, quer como atores.
Embora já tivesse atrás de si uma filmografia apreciável foi em 1993, que dei pela primeira vez com o seu nome enquanto coautor do argumento de Smoking/ No Smoking para Alain Resnais. Jaoui era obviamente a outra autora da adaptação da peça do inglês Alan Ayckbourn. O humor, as replicas inesperadas, a afirmação feminina face aos estereótipos masculinos já eram características, que a dupla não prescindiria em toda a obra desde então partilhada.
No ecrã o rosto era inconfundível por quanto pressupunha o tormento interior, a astenia, a fragilidade logo sacudida pela frase sibilina, pela explosão de mau humor, quiçá mesmo pelo insulto cruel com que neutralizava o adversário do momento, definitivamente sem réplica.
Na cumplicidade com Jaoui dava-lhe o primado da palavra, ou não fosse ela a expansiva, a social e a temperamental, enquanto ele esquivava-se num laconismo quase silencioso. Essa conivência tácita fazia com que Resnais os designasse como Jabac.
Noutro belíssimo filme para o mesmo realizador, On Connait la Chanson, já o encontrávamos num papel secundário, mas ainda resistia a aparecer no ecrã com a proeminência pretendida por quem apostava no seu talento, sendo conhecida a aversão a ver-se nele projetado alegando que “na tela espero ver Cary Grant e vejo... Jean-Pierre Bacri. É uma tortura.”
Noutra entrevista memorável - concedida à revista Trois Couleurs ele rejeitava qualquer estereotipo a que o quisessem colar: “As pessoas consideram que eu faço sempre o mesmo? Tanto melhor para elas! Poderia provar-lhes o contrário, mas francamente, tenho mais que fazer. Conheço a neura das pessoas, que preocupam-se em arrumar tudo muito bem arrumadinho numa prateleira. Portanto, nada de extraordinário: há clichés sobre mim como os há sobre todos os temas possíveis. Nunca quis fazer de herói: são abjetos os tipos simpáticos e maravilhosos a quem os outros fazem sofrer. Não existem. Para mim, o ser humano é hiperfalível e vulnerável. É tenebroso que queiram convencer as pessoas de como o mundo é binário. Os gentis de um lado, os maus do outro. Isso não me interessa. Procuro os personagens que sejam verdadeiramente humanos.”
A biografia espelhava esses altos e baixos de que todas as vidas são compostas. Nascera na Argélia, filho de um carteiro que distribuía cartas e encomendas durante a semana e aos sábados e domingos picava os bilhetes dos espectadores do cinema Star Castiglione. Aos onze anos a família mudou-se para Cannes e ele estudou com o objetivo de ser professor, depois banqueiro, a seguir publicitário, acabando por se decidir pela carreira de ator. Ao mudar-se para Paris ganhou a vida como arrumador no Olympia enquanto estudava numa das escolas de atores mais prestigiadas. Os papéis que interpretou nos palcos e no cinema lembram um taciturno Peter Sellers, ora capaz de no-lo deixar ver no Lolita de Kubrick, ora no Goodbye Mr. Chance, sem em nenhum deles ter-se desmaquilhado do papel de figurante indiano no The Party de Blake Edwards.
Dos filmes que concebeu a meias com Jaoui avulta o papel de Jean-Jacques Castella em O Gosto dos Outros. Como esquecer esse pato bravo boçal, que decide aprender inglês e se apaixona pela professora contratada para essa difícil incumbência? A personagem parecia talhada para o que dele imaginávamos: um misantropo neurasténico capaz de descobrir o amor e também toda a cultura até então dele desconhecida. Era um estudo dos comportamentos sociais, quer no que revelavam na relação com os outros, quer como não conseguiam esconder os demónios interiores neles existentes.
Como cidadão também se lhe conheceu a condição de franco-atirador inconveniente, que chegava a transtornar os representantes do poder quando a ocasião se lhe apresentava. Como daquela vez em que recebeu um dos vários Césares, e invetivou o ministro da Cultura de Nicolas Sarkozy pelas injustiças cometidas contra os técnicos de cinema então em greve. Daí a fama de ser tido como o «esquerdista de serviço». Ou não fosse ele, igualmente, a propor que, na sequência da crise bancária de há uma dúzia de anos, propusesse que, a exemplo do que o poder fazia ao contrariar a violência dos subúrbios das grandes cidades com a intervenção musculada dos polícias de choque, também agisse da mesma forma relativamente aos escritórios da Goldman Sachs. Daí a constatação de que “o mundo transforma-se lentamente. É preciso crer que o progresso avança passo a passo. Mas tendo a consciência disso de forma a passarmos da perpétua deceção para a lucidez.”
Jean-Pierre Bacri desaparece da mesma forma como se nos revelou: ator fora do comum capaz de transformar um personagem encantador num endiabrado perturbador das nossas certezas.
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