Janine é a personagem mais empática do triunvirato, que encontramos em «O que não pode ser salvo», o romance mais recente de Pedro Vieira.
Nascida em Paris ela vive as dificuldades de aculturação inerentes à segunda geração dos que se fixaram em França. Mas, por outro lado, não encontra qualquer identificação com o ambiente rural onde a mãe a pretenderia fixar ao consumar-se a morte do progenitor. Por isso a escapadela para Lisboa, para casa de uma tia complacente, constitui a alternativa, obrigando-a a enfrentar os desafios da autossuficiência.
Para a sua geração o mais comum é vegetar no desemprego e essa é a condição de Tiago, o amigo que conhecera episodicamente na festa da aldeia e reencontrara na capital depois de firmarem amizade no facebook. Mas há quem encontre solução medíocre nos empregos precários dos call centers. E isso é o que sucede com Janine, condenada à permanente insatisfação pela entediante ocupação em que não se realiza. O seu sonho é ganhar o bastante para regressar a Paris e, quiçá, retomar as correrias sem fim entre Montmartre e Saint-Germain, com a amiga Sarah, evitando a pobreza de Saint Denis na medida do possível.
Pedro Vieira vai alternando diálogos com reflexões das personagens passando pelas mensagens de facebook com que garante a justaposição dos artifícios do presente com os recursos estilísticos investidos na história de educação sentimental.
Quase a concluir a leitura, já posso considerar «O que não pode ser salvo» como um dos títulos mais interessantes da literatura de língua portuguesa conhecida neste ano de 2015. E a justa admiração por um dos mais polifacetados talentos da nossa vida cultural só encontrou nele acrescidos motivos de fundamentação.
Extrato:
(...)
Corremos sem conhecer o cansaço em redor da Place des Vosges, rodopiando, fazendo por entontecer a cabeça, os pensamentos, os miolos ainda frescos, contornando as fontes que nunca se cansam de oferecer água delicadeza tudo a quem atravessa a praça, que nunca cessam de recordar a quem passa o esplendor desta cidade, o spleen de Paris, como escreveu o poeta, ao contrário do que se passa na casa de família onde não cessam os anseios «tens a certeza de que queres continuar a estudar Letras, filha?», «o que é que vai ser do teu futuro, Janine?», mas por agora corremos e saltamos, fazemos troça dos turistas que se passeiam de queixo caído e com as invejas à mostra, no Oregon não há nada que se pareça com isto e eles mal contêm o espanto, can you believe th is?,
e mesmo já sendo adultas, mulheres crescidas, cabriolamos e fazemos negaças à estátua do rei, como vai monsieur Louis, ça va bien, mon petit, o décimo terceiro da lista dos luíses montado a cavalo mas inseguro, rezam as crónicas, em pose de bronze para a posteridade mas fraco de vontades e carácter, dizem que a mãe lhe rezava tudo ao ouvido, eis um monarca sem paciência para a lida da casa e dos palácios, e para os jogos de poder, e para as armas terçadas entre católicos e huguenotes, o senhor esteja convosco (connosco?), tão diferente do seu filho que viria a reinar com o mesmo nome mas armado de toda uma outra auto-estima, Rei-Sol, l’état c’est moi e não só, cuidado Sarah, mais devagar, olha que ainda atropelas alguém, apanha-me se conseguires, ou delega a perseguição em alguém, foi o que fez o décimo terceiro dos luíses, entregou a gestão ao conhecido Cardeal Richelieu, homem de carne e osso e fé no deus da intriga, personagem de ficção e de desenho animado, de Dumas ao Dartacão, estás a ver, papá, as Letras são tudo nesta terra, tanta memória, camadas de esplendor sangue e morte, charme e traição, glória e romance, tantas histórias contadas e por escrever, razão pela qual os americanos se repetem, can you believe?
(...)
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