quinta-feira, novembro 05, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Saber que não quer ir por aqui

De entre os vários livros, que ando a ler ao mesmo tempo - um vicio antigo de que nunca me curarei! - saliento o agrado propiciado pelo mais recente romance de Pedro Vieira: «O que não pode ser salvo».
Inicia-se com o enterro de António, emigrante sempre saudoso da terra, que deixara para trás, e morto antes dos sessenta, dois ou três anos antes de cumprir o desejo de um regresso definitivo àquela que considera a sua verdadeira casa..
Quem não fica satisfeita com a mudança para Portugal é Janine, a filha que vive a intranquilidade permanente de nem se sentir francesa nem desta terra distante para onde a mãe forçou a vinda.
Sem recursos para regressar a Saint-Denis, ela consegue albergar-se em casa de uma tia em Lisboa e é aí que irá conhecer o triângulo amoroso, que estabelecerá com Tiago e com Mateus.
O primeiro é um filho de classe média, sem emprego e já sem ocupação académica, gastando os dias no computador ou nas conversas cinéfilas com uns amigos, que o tomam como seu bobo de serviço.
O outro é Mateus, jovem negro com um passado de delinquente juvenil, mas a quem a passagem pela Bósnia abriu os olhos para um tipo de ambição mal recebida pelo irmão mais velho e os seus amigos do bairro da margem sul onde vive.
Pela via ficcional descreve-se a realidade bem da geração dos cal centers, em que os jovens vivem a frustração de não poderem sequer almejar por sonhos consistentes enquanto a classe média vai enganando o tédio com a ilusão das satisfações adúlteras.
Os diálogos alternam com as reflexões das personagens, muitas vezes transformadas em analepses, que explicam mais assertivamente as razões para a vontade de se ir sabe-se lá para onde, porque o único sítio onde se não quer estar é aqui...

Extrato:  
De regresso à terra revolta: temos o que sobra de uns collants que o solo não come, solo fértil em bichos que estão lá mas não se vêem, exatamente como quando se está doente, o corpo uma madeira que se desfaz em pedacinhos, mais um daqueles ossos enormes, daqueles da perna, duros de roer até pela eternidade, e passados tantos anos, depois de tantas saudades lançadas memória abaixo, a avó Rosa ainda dura, como se não pudesse despedir-se de vez deste mundo, tal como António irá durar na cabeça de quem o entrega à campa, rasa por vontade do próprio, o que só poderá dar em falatório, que gente é esta que nem um arranjo de mármore lhe faz, o costume em terras de fel e azedume, António que vai ficar marcado por muito tempo na memória de Janine, de Maria de Fátima, de Dominique, outra trindade, como a conta que Deus fez nas nossas costas, noves fora nada, e diz-se marcado como se tivesse oferecido o ombro de bandeja àquelas vacinas da BCG que se davam no antigamente, fabricadas de maneira a prevenir a doença e a garantir a fealdade da picada, a cicatriz de uma geração, habituada a dar o corpo a alma o conforto ao manifesto, eis Janine que vem despedir-se de António na companhia dos seus e de tantos outros a quem nunca pôs a vista em cima sabendo que o pai vai estar sempre lá, para o bem e para o mal, do lado do bem o António carinhoso, obstinado, com vontade de aprender e muito medo de embrutecer, vacinado contra a tuberculose e contra o resto. Do lado do mal o António que se deixou levar antes dos 60 anos, como se de um dia para o outro tivesse pensado «já chega», como se tivesse aplicado um ponto final à vida sem perguntar a opinião a ninguém, aos filhos à mulher à concierge lá do prédio, metade do Seine-Saint-Denis com a boca aberta de espanto e pavor, não se faz, um lutador não se deixa escorregar pelas cordas do ringue do pé para morte, não se faz, homem que é homem não se desfaz dos seus por omissão, é falta de decoro, falta de senso, até porque debaixo destas pazadas de terra não há ninguém para mimar, para cuidar, não há sequer ninguém com quem falar, os fémures, os nylons, mudos que nem charlots naquela tela do cinema ambulante que vai não volta fazia o milagre de aterrar na vila. Pouco importa. 

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