Há um par de semanas indaguei a pessoa amiga sobre que livros teria de ensinar aos alunos do 10º e 11º ano enquanto professora de Português. Para minha surpresa debitou-me a canónica trindade dos Lusíadas, dos Maias e de Fernando Pessoa.
- Então, e autores contemporâneos?
Nenhum, afiançou-me. Nem sequer um Saramago, plenamente justificado pelo Nobel recebido e com títulos capazes de entusiasmarem os mais renitentes leitores!
O episódio serviu para dar ainda maior substância ao tipo de ensino imposto pelo sinistro crato. Porque o quis reduzido a uma catadupa destinadas a encher as cachimónias dos petizes e dos adolescentes, depois sujeitos aos imperiosos exames, o antigo crítico do «eduquês» quis retirar aos jovens deste país as capacidades para refletirem e questionarem, não vão eles armarem-se em jovens rebeldes com causas.
Em vez de lhes criar condições para aprenderem a ver, a ouvir e a ler, crato quis transformá-los em robôs capazes de memorizarem definições e fórmulas sem compreenderem para que lhes servirão elas.
Se o ensino deveria propiciar o gosto pela leitura, nunca o conseguirá com Camões, com Eça ou com poemas do tipo «A Tabacaria» (que, em adultos, poderemos apreciar na sua devida complexidade, mas são inacessíveis a jovens imaturos).
No tempo dos governos de José Sócrates o Plano Nacional de Leitura tinha objetivos ambiciosos e bem claros, quanto aos objetivos a alcançar com os títulos propostos para os diversos escalões etários, incluindo os adultos das Novas Oportunidades. Um esforço, que a equipa de crato tratou de assassinar em simultâneo com tantas outras boas iniciativas outrora planeadas no Ministério da Educação.
Esperemos que o novo Governo, saído das eleições de hoje, seja capaz de pôr um ponto final a tanta incompetência e relance os objetivos anteriormente almejados por Maria de Lurdes Rodrigues e Isabel Alçada.
Nesse sentido, o recentemente publicado «As Noivas do Sultão» de Raquel Ochoa constitui um exemplo paradigmático de uma leitura ideal para os jovens alunos daquela amiga professora. Porque está muito bem escrito, porque tem uma história palpitante sobre o que se passará de estranho no harém do príncipe marroquino chegado ao Tejo em dois barcos e, sobretudo, por ensinar imenso sobre os usos e costumes do Portugal dos finais do século XVIII, quando reinava a beatífica Viradeira.
Não tenho qualquer dúvida em como poucos leitores se sentirão distanciados de uma intriga, que abarca o tema do traduttore/traditore e o sempiterno voyeurismo luso sobre tudo quanto possa pressupor algo de libertino a passar-lhe ao largo.
Com romances desta qualidade, ganhar-se-iam pela certa os leitores, que tanta falta fazem para viabilizar uma das atividades criativas onde a probabilidade de retorno é das mais interessantes. Porque, quantos euros podem significar anualmente os direitos pelas traduções de literatura portuguesa um pouco por todo o mundo?
Para abrir o apetite aqui fica um extrato com as duas páginas com que se conclui o excelente romance, que aqui elogio sem reservas:
No dia seguinte, sexta-feira, 9 de Agosto, pelas três da tarde, quando a maré começava a apontar, fez a nau Medusa sinal com um tiro de peça da sua artilharia para que os demais navios se fizessem à vela. Esta foi a primeira a largar o pano, brilhando ao sol do Tejo, e logo o navio onde iam as princesas, depois o outro; e por último aquele em que seguia o arrais.
Frei João via os barcos deslocarem-se com uma confiança nova, comandados por homens do mar experientes, conhecedores daquela rota, daquelas naus.
As mãos tremiam-lhe um pouco. Pensou em Manuel do Cenáculo partindo também e em como precisava de uma longa e paciente confissão. Não compreendia o reino onde vivia, mas também não encontrava razão plausível para o abandonar. Havia qualquer sentimento profundo nesta terra, uma inércia que o engodava e abafava, limitando horizontes. Portugal tinha um ritmo muito próprio, manias muito próprias, como se a velocidade de acontecimentos de qualquer outro lugar que ele conhecesse andasse a uma constância supersónica se comparada com este reino. Ali, tudo era pensado, refletido, interiorizado. Guardado à sombra, para não apodrecer rapidamente - não se transformar.
Um ninho confortável e alegre que nunca deixava os seus filhos voar. E os que tinham voado, saíam asfixiados, doidos de raiva perversa, pois a raiva à própria mãe é antinatural, dói.
Nesse aspeto, podia afirmar, convictamente, que era puro-português: quem lhe dera nunca ter de sair dali. Quem lhe dera nunca ali ter vindo parar.
Do outro lado, as princesas colavam-se às escotilhas. Olhavam para Lisboa afastando-se. Sentiam-se afastar também de um certo aconchego. A cidade sorria-lhes calada. Calava também uns poucos devaneios que por aquela terra foram possíveis. Não existe tal coisa como um conjunto homogéneo de mulheres. Havia afinal quem tivesse o prazer de morrer em Portugal.
Olhavam a boca do rio e viam o grande mar, embora o rio fosse ameaçadoramente largo, o mesmo desamparo que a água dá, existia a montante e a jusante. A largueza da foz convidava com igual intensidade a sair ou a ficar.
A corrente empurrava o barco, indicando o caminho, educadamente expulsando.
Simbólica e cerimonialmente, ao passar pela Torre de Belém, do poético edifício coberto de fortes símbolos estourou uma salva de vinte e um tiros saudando as princesas. A bateria nova e a Torre de São Julião deram-lhes salvas iguais.
A rainha dormitava. O rei espreitava a janela, satisfeito. Mal podia imaginar que dali a alguns anos também ele se encontraria numa situação semelhante, bem mais séria, em fuga para o Brasil.
Edgardo desaparecera, não dera notícias durante dias. Quando voltou, pediu uma pequena terra num monte alcantilado de Sintra, e com a conivência do seu amo, sem ninguém saber porquê, isolou-se.
Lisboa, por seu turno, demoraria poucos anos a esquecer este episódio. Seriam de esperar narrativas empoladas, grandes relatos e romances, mas os anos que se seguiram sepultaram a história nas teias da biblioteca da Academia. Pudera! Em breve, de França marchava Napoleão, e com ele as conquistas, as alianças, as derrotas, a guerra e o povo solitário lutando contra todas as forças que não entendia.
Este episódio ficaria submerso sem ter a atenção da literatura ou espaço na memória popular. Apenas um sítio, de seu nome Con- gumela da Moura, na zona de Sintra, perpetuou aquilo que tudo indiciava ser uma história.
Mas porque a vida tem desmandos incompreensíveis, foi a autora encontrar esta narração em Rabat, pela voz de um português, numa conversa rodeada de tajines e cachimbos de água, fervendo ela própria em ansiedade, pedindo para ser contada.
Por trás desta sucessão incrível de eventos, que por esta altura já o leitor tem dentro de si, foi a aventura abrindo sulcos como um rio, furando e avançando, encontrando o amor no desconhecido, encontrando suavidade nas mais ásperas leis da vida, confiando que encontraria o mar.
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