O que eu gostaria de ver «As Mil e uma Noites» consagrado com o próximo Óscar para o Melhor Filme Estrangeiro. Reencontraria assim a alegria sentida aquando da atribuição do Nobel a Saramago, quando a direita quase o tinha pretendido reduzir à condição de pária no seu próprio país.
Ainda não é propriamente isso que sucedeu com Miguel Gomes, mas é triste ver gente encher plateias para ver uma idiotice como o é «O Pátio das Cantigas» e deixar às moscas um projeto, que diz tanto sobre o país e que vivemos...
O título indicia-o: para conceber «As Mil e uma Noites», Miguel Gomes deixou-se influenciar pela estrutura do grande clássico da literatura oriental. Mas não só: também bebeu nele o seu espírito libertário e comprometido, que continuam a justificar a sua intemporal modernidade.
Logo de início, o autor assume que a abstração causa-lhe vertigens. E, no entanto, logo nos remete para uma sucessão ininterrupta de metáforas., que nos leva até ao fim.
Está lá o cadáver da baleia, que veio dar ao areal e se faz explodir, como aparentava ser o país em 2013 e 2014, quando decorreu a rodagem do filme, e o poder político, aliado à troika, impunha um empobrecimento acelerado da maioria da população. Aliás, as primeiras imagens com que ele se inicia remetem para o escândalo da privatização dos Estaleiros de Viana do Castelo, que representam o exemplo mais lapidar do esbulho da propriedade pública em proveito de interesses privados.
Estão também as vespas chinesas, que invadem o território natural das aqui existentes e as tendem a eliminar.
Estão igualmente esses políticos e sindicalistas desejosos de conseguirem a ereção permanente prometida por um charlatão africano e aliviam momentaneamente a dívida, que logo voltam a aumentar quando o incómodo priapismo os obriga a desembolsar o suficiente para dele se libertarem.
Não falta ainda essa justiça, que se ridiculariza por tomar por réu um galo, que acorda os vizinhos a desoras.
Miguel Gomes questiona-se: como é possível continuar a fazer cinema nestas condições, mesmo quando se acaba de ser incensado pela crítica internacional a propósito do seu filme anterior («Tabu»)?
Existe nele uma opção claramente política, já que se coloca ao lado dos Magníficos, que é como designa os que foram excluídos do sistema liberal. E para isso vai criando o filme à medida, que trabalha o seu conceito, como se se tratasse de um autêntico work in progress.
Se começa por fugir dos próprios técnicos e assistentes, logo encontra refúgio numa forma de paródia reveladora do estado em que três anos de governação da direita deixaram o país. É por isso que «O Inquieto», a primeira parte desta trilogia, constitui um retrato desassombrado e devastador sobre um modelo de transformação do país num amontoado de ruínas (físicas e humanas).
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