quarta-feira, outubro 14, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Quando se confunde a mulher com um chapéu!

O recente desaparecimento de Oliver Sacks justificou o reencontro com a obra do neurologista, que aprendi a admirar desde 1990, quando «Awakenings» assinalou a sua apresentação ao grande público. Desde então aprendemos muito com a divulgação dos seus textos relativos ao funcionamento do órgão mais complexo do nosso corpo: o cérebro...


Data de 1861 o dealbar dos estudos científicos sobre a relação entre o cérebro e a mente. Foi nesse ano, que Broca “descobriu que as dificuldades específicas no uso expressivo da fala (afasia) se seguiam de forma sistemática, a lesões numa área específica do hemisfério esquerdo do cérebro” (pág. 17)
Doravante a neurologia cerebral procurou criar um mapa do cérebro humano em que se detetassem centros cerebrais a que correspondessem faculdades específicas, como as linguísticas, as intelectuais, as percetivas, etc.
No final do século XIX Freud já punha em questão essa forma simplificada de ver tal  correlação estreita, porque detetava complexidades por ela não contempladas. Mas, de uma ou outra forma, os neurologistas e os neuropsicólogos sempre priorizaram a sua atenção para o hemisfério esquerdo do cérebro onde, mais facilmente, conseguiam estabelecer relações entre lesões óbvias e a perda de capacidades dos respetivos pacientes.
Quanto ao hemisfério direito a atenção científica acabou por ser bastante negligenciada apesar de controlar “os poderes cruciais do reconhecimento da realidade, que todas as criaturas vivas são obrigadas a possuir para sobreviver”. (pág. 19).
A primeira parte do livro mais conhecido de Oliver Sacks - «O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu» - é dedicado à perda de capacidades e o primeiro caso abordado coincide precisamente com o que lhe deu o ensejo para o título.
Sacks aborda o caso do Dr. P, um músico distinto, que cantara durante vários anos e era professor na escola local.
Quando o foi consultar, o dr. P queixava-se de ter dificuldades em reconhecer o rosto dos alunos, apenas o conseguindo pela respetiva voz.
Depressa chegou à conclusão de se tratar de um caso bem mais complicado do que a descrição inicial pressuporia: ele via rostos onde não existiam, dirigindo-se por exemplo a candeeiros como se fossem pessoas ou a bocas de incêndio como se se tratassem de crianças.
Aparentemente teriam sido os diabetes a agudizarem um estado já antes existente, mas que o paciente ia disfarçando sob a capa de se tratar de alguém muito bem humorado.
Nos testes Sacks apercebeu-se que ele “nunca conseguiu ver nenhuma fotografia como um todo. Não conseguia ver o geral  embora apanhasse todos os detalhes como pontos luminosos num ecrã, num radar.” (pág. 26)
Mas  maior espanto aconteceu, quando, concluídos esses exames, o dr. P procurou o chapéu para se retirar e agarrou a cabeça da mulher como se dele se tratasse. Ora, ela parecia habituada a esse tipo de situações.
Sacks concluiu que os lóbulos temporais estavam intactos. Mas o que se estaria  a passar com os parietais, especialmente nas áreas mais vocacionadas para o processamento visual? É que o paciente olhava para os rostos como se  fossem puzzles ou testes abstratos.
Sem conseguir uma solução cirúrgica eficaz para o tumor nele detetado, Sacks apresentou-lhe uma alternativa comportamental: como a música sempre fora tão importante, teria de ser ela a substituir-se à imagem. E assim ocorreria até ao fatal desiderato da sua doença.
Analisando a posteriori o caso, Sacks concluiu que faltava ao dr. P. aquilo que significa discernimento: uma compreensão intuitiva, pessoal, total e concreta. Algo que encontraria igualmente em casos descritos por outros neurologistas: “Se o dr. P confundia a mulher com um chapéu, o paciente de Macrae, que também não reconhecia a mulher, precisava que ela se identificasse através de uma marca visual como uma peça de vestuário, por exemplo, um chapéu”. (pág. 40)
- texto sugerido pela leitura de «O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu» (ed. Relógio de Água, 2008)


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