Há quase sessenta anos, quando nasci em frente à igreja do Monte da Caparica, estávamos a dois passos de Lisboa, mas ainda subsistiam resquícios das velhas crenças ancestrais. O marido da peixeira, frequentemente acometido de ataques epiléticos, seria de facto um lobisomem. E as noites escuras chegaram a ser perturbadas por um estranho fantasma, que se veio a descobrir depois tratar-se de uma das principais beatas da Igreja que, envolta num lençol, ia ter com o seu amante.
Não admira que, mergulhada nesse caldo cultural, a minha mãe arranjasse uma explicação singular para os sintomas psicossomáticos sentidos depois de se curar da tuberculose e que muito jeito lhe davam para, a seguir, ver-se objeto de muitas atenções por ser “doentinha”: tinham-lhe feito um “feitiço”, que a submetiam a constantes enxaquecas.
Cumprindo o célebre provérbio de mulher doente, mulher para sempre, ela ainda perdura, sempre a queixar-se das dores de cabeça, mas tremendamente rija nos seus quase noventa anos, enquanto o meu pai há muito já lá mora, esqueletizado, no cemitério.
E, no entanto, comprando-lhe a tese, a quantos sítios ele a levou quando eu era uma criança. Bruxos, curandeiros, naturopatas e outros charlatães da mesma igualha, fizeram-nos dar a volta ao país, para sempre regressarmos com o mesmo veredito com que partíramos: não existiria cura para aquele “mal” O que, para a minha mãe, só significava uma coisa: quem lho tinha causado - e que ela bem adivinhava quem fora! - atirara para o mar o artefacto para tal preparado, o que significava não haver hipótese de remissão.
Essa experiência dos meus verdes anos explica a indignação, que sinto por quem explora a crendice e o medo alheios para os explorar. Por isso sinto-me muito identificado com a realizadora Claudia Ruby que, com o seu documentário «Medicinas Alternativas e o Cancro: um comércio lucrativo» foi investigar exemplos concretos de «galvanoterapias» (“ondas positivas” que destruiriam tumores) ou de milagres conseguidos à custa de psiquismo e de regimes alimentares.
Aprofundando a sua investigação, encontra uma curandeira que rezava em aramaico a uma Virgem Negra ou pseudocientistas apostados no recurso ao dióxido de cloro ou à “vitamina B17”, para cujos “méritos” organizam conferências e seminários.
Em todos esses exemplos denunciam-se as práticas fraudulentas, que prosperam à custa de doentes cancerosos.
Oncólogos, advogados e familiares de pacientes, entretanto falecidos, procuram dar seguimento às suas queixas à justiça, encontrando, porém, inesperados obstáculos.
Essas medicinas ditas “alternativas” encontram sucesso graças ao desespero das vítimas e às falhas da medicina convencional: sob a forma de “receitas miraculosas”, capazes de eliminarem os cancros e evitarem as temidas quimioterapias, elas são vigarices indecentes, que agravam as possibilidades de cura de quem nelas acredita.
Quando o filme chega ao fim, o balanço é elucidativo: existe um lado sectário nessas “terapias”, que apostam na culpabilização do próprio doente, quantas vezes levados a crer na relação causa-efeito entre os seus comportamentos e a “desarmonia” com o seu “ser global”. Ainda assim, Claudia Ruby apresenta um caso a levar em conta: uma clínica de Essen, onde a terapia convencional é acompanhada de algumas sessões de medicina alternativa (ioga, acupunctura, etc), não para a substituírem, mas como forma de apoio psicológico a quem se encontra tão debilitado. E isso sim, pode fazer algum sentido...
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