Eu sou um impenitente admirador da obra de Federico Fellini.
«Amarcord» foi o que mais me deslumbrou e melhor ficou registado na memória, mas tantos outros - «La Doce Vita», «8 1/2», «La nave va», «La Strada» ou «Roma» - merecem ser vistos e revistos para nos rendermos ao fascínio de uma realidade imaginária, muito diferente da que lhe serve de modelo.
Ao passarem-se vinte anos sobre a morte do «maestro», Ettore Scole interrompeu a bem merecida reforma e realizou esta homenagem ao amigo com que partilhara tantas vivências e projetos.
Em vez de optar pela lógica dos documentários hagiográficos, Scola decidiu ficcionar o percurso do biografado, recorrendo a atores. Um deles, o narrador do filme, remete para um personagem semelhante, que nos servira de cicerone pelas memórias de Rimini no tal filme meu preferido. Aquele em que a Gradisca vai partindo corações adolescentes e o tio do protagonista foge para cima de uma árvore a exigir que lhe arranjem “una donna”.
Há também a música. Normalmente composta por Nino Rota, ganhava quase estatuto de personagem na maioria dos filmes de Fellini. Por isso Scola, ora a cita literalmente, ora encomendou novas composições, que não teríamos dificuldade em associá-las àquele compositor, se não soubéssemos da sua condição de original.
Talvez não se justificasse a importância atribuída à revista juvenil de banda desenhada onde Fellini e Scola colaboraram antes de se porem a fazer cinema. Mas se esse argumento de cumplicidade com o seu homenageado é tão valorizado por Scola, quem somos nós para contestá-lo?
O argumento evolui cronologicamente, mas com alguns saltos para diante e outros para trás, que não dificultam a perceção da mensagem, por muito que ela seja preferencialmente apreendida pelos conhecedores da obra felliniana. Porque Ettore Scola vai-se multiplicando em piscadelas de olho ao espectador, incentivando-o a associar cada cena à que lhe correspondia num dos muitos filmes do realizador.
Cinema muito imaginativo, podemos reconhecer em Fellini a ausência de uma crítica social e de uma denúncia das desigualdades expostas implicitamente nos seus vários títulos. Mas, mais preocupado na utilização dos muitos estereótipos descobertos durante os seus passeios pelas madrugadas insones, enquanto percorria a cidade deserta e a dar boleia a gente estranha, Fellini nunca parece ter-se preocupado com as desigualdades de rendimentos, com as mensagens papais ou com a vacuidade dos discursos do poder.
Há, porém, algo que o torna único: o estranho dom de suscitar a rendição encantatória dos seus espectadores...
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