sexta-feira, dezembro 02, 2022

Miolo: as intermitências da morte nos livros e nalgumas telas

 


22 de novembro de 2023

O que era a vida de José Saramago em Lanzarote de acordo com o incontornável testemunho de Pilar del Rio. O trágico luto de um casal cujo filho morre afogado num acampamento de férias durante o verão. A vida de um combatente da Guerra Colonial apostado em deixar testemunho de como se sentiu minimizado pelos fados da História.

É destas leituras, que se vão norteando os dias, todas elas tendo a morte como premissa comum. Ou já ocorrida e, enquanto tal, vivida por quem sobreviveu a quem pretende preservar na memória. Ou, no terceiro caso, enquanto risco iminente durante missões de imprevisível desfecho.

Grande literatura - daquela com L bem maiúsculo -, só a do romance de Siri Hustvedt, que continua a merecer lenta e bem assimilada absorção. Porque estão profundamente detalhadas as emoções inerentes a cada momento numa acumulação contraditória por ser essa a nossa natureza. Nesta altura o narrador penaliza-se por perder o carácter obsessivo com que tinha continuamente o filho no pensamento, quase sentindo como traição o ter outras preocupações a ocuparem-no. E é essa descrição dos dilemas em íntima disputa, que acaba por tornar tão sedutora a narrativa da escritora norte-americana.

 

Uma das muitas experiências memoráveis de frequentador de museus e exposições está associada a Amadeo de Sousa Cardoso, cuja retrospetiva na Gulbenkian em 2006 incluiu a possibilidade de, nos últimos dias, a apreciar madrugada adentro.

Connosco isso sucedeu às quatro da madrugada e por lá encontrámos gente conhecida com quem foi natural a partilha de algo de festivo.

A obra, e muito menos a vida do artista, pouco teve desse lado mais brilhante, lamentando-se-lhe a desdita de morrer cedo, aos trinta anos, com a gripe espanhola, quando antevia-se provável o regresso ao convívio intenso com as vanguardas em Montmartre de que usufruíra entre 1906 e 1914, tornando-se amigo de Brancusi ou do outro trágico Amadeo (Modigliani). A Primeira Guerra cortou-lhe cerce esse quotidiano mergulho num ambiente criativo de que Picasso ou Braque eram dois dos maiores expoentes.

Embora a origem na classe dos abastados produtores vinhateiros da região de Amarante o impelisse para o academismo figurativista em que o tio, que tanto o influenciara, era pródigo, a vivência cosmopolita na Cidade-Luz direcionou-o para a abstração com escala no cubismo, que constituiu notória inspiração no famoso quadro relativo à cozinha da casa de Manhufe, datado de 1913.

Sobre ele poderemos sempre conjeturar o que teria sido o percurso ulterior se se apanhasse em Paris na euforia dos anos do pós-guerra, quando os movimentos artísticos se sucediam uns aos outros, ora numa lógica de continuidade, ora de rutura. Mas é interrogação sem resposta, como o é para outro seu contemporâneo, também desaparecido no mesmo ano, e até dois anos mais novo: Santa Rita Pintor. 

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