segunda-feira, outubro 30, 2023

O Belo Adormecido, Lídia Jorge, 2004

 

Este tem sido um ano farto em prémios literários para Lídia Jorge, que não espantará se, nos próximos dias, somar aos de âmbito nacional um dos principais conhecidos em França por esta altura.

Coincidiria assim com a presente leitura de um dos seus títulos menos conhecidos por agregar contos que ela própria subestima quanto à sua importância relativamente aos romances. Esses textos mais curtos serviriam de exercícios entre os projetos de maior envergadura, quase para só manter a agilidade da escrita em histórias, que não mereceriam empenho mais demorado. Curiosamente, pensando nos da coletânea O Belo Adormecido, podemos constatar a aposta em personagens mais arriscados, porque em permanente exercício de equilíbrio numa corda bamba, que os ameaça mergulhar no vazio.

No que dá título ao livro há a atriz, que prepara a prevista interpretação teatral de Orlando de Virginia Woolf e, por isso, julga encontrar o devido sossego num hotel distante, despojado de clientes por essa não ser a estação alta de veraneio. Inesperada lhe surge, porém, a relação ambígua com um rapaz, ainda quase adolescente, por ali encontrado na companhia de um punhado de homens, que o têm como seu brinquedo. Até o fazerem desaparecer  sabe-se lá por que motivo! Ou porventura ele lhes escapando, embora os deixem envoltos num comprometimento, que os atemoriza. O voyeurismo e a tentação erótica são os temas deste conto com características aparentadas ao género policial.

Em As Três Mulheres Sagradas somos instados a conhecer as circunstâncias do martírio sádico a que uma bem intencionada católica se sujeita, quando promove uma campanha contra o aborto nas praias algarvias e se faz acompanhar de duas companheiras tão ou mais fanáticas do que ela e de uma adolescente grávida a quem tinham convencido a levar a gestação da criança até ao fim. Apesar de acabar sozinha e vilipendiada, Vera Brandão conjetura existir um sentido divino na sua terrível experiência, que não lhe faz vacilar as convicções.

O tema da tentação volta em Assobio na Noite em que um professor universitário encontra uma antiga aluna durante a vilegiatura estival e entra em dispendioso conluio com o empregado da receção do hotel, que lhe serve de informador, para conseguir um encontro clandestino com ela antes de regressarem às rotineiras vidas. E, uma vez mais, a distância entre o desejo e a concretização, revela-se frustrantemente insuperável.

O martírio - dos que trabalham e não recebem - é o tema de Miss Beijo e da proposta dada por uma miúda de catorze anos, que não enjeita usar a mais ousada das estratégias para ser paga (mesmo parcialmente!) do que lhe é devido. Razão suficiente para o irmão lhe replicar a determinação indo à obra donde fora escorraçado sem pagamento e deixar exangue o encarregado, que se comportara como vilão sem escrúpulos. Tudo presenciado por um(a) narrador(a) com poderes divinos apenas decidido a dar testemunho do sucedido sem em nada nele intervir.

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