Vale a pena recuar ao ano 2000 e referir a imensa surpresa com que os espectadores do Festival de Locarno reagiram à apresentação deste filme, que comportava uma estética e uma estrutura narrativa inesperada para aquilo que conheciam do cinema soviético. Primeiro atónitos, depois seguindo a lógica proposta por Fernando Pessoa para a ingestão da coca-cola, renderam-se por inteiro a um filme, que parecia reatar com um tipo de cinema como o prefigurado por Antonioni no seu famoso A Aventura (1960). A exemplo da Claudia interpretada por Monica Vitti, que se enfastiara na convivência dos amigos e perdera todas as ilusões a respeito do homem com quem poderia casar, a protagonista deste filme é uma jovem engenheira, que descobre a tempo a natureza íntima de Volodia e a quem acaba por recusar a proposta de darem o nó.
Diferencia-as a condição de classe: ao contrário de Claudia, que provinha da alta burguesia, Lena tem trabalho numa grande tipografia e está vinculada ao Partido pelo qual se candidata a dirigente local. Mas existe o mesmo tédio perante a forma de encarar a vida pela sua geração, incomodamente paralisada num presente já distante do passado heroico, que vê celebrado pelos mais velhos, e sem perspetivas animadoras num futuro, que promete não ser muito diferente do frustrante rame rame em que se enleia .
Não admira que a censura tenha obstado a que este filme tivesse a merecida divulgação internacional. A União Soviética de Brejnev faria todos os possíveis para colocar panos a taparem os muitos espelhos reveladores da sua realidade. Marlen Khutsiev perdeu assim a possibilidade de ser celebrado com o mesmo entusiasmo com que se viu brindado no fim da vida. O que não deixa de ser paradoxal num realizador tão determinante para a renovação dos códigos do cinema do pós-guerra e, como tal, desconhecido por tempo demasiado.
E não se pense que se lhe possa apontar uma grande divergência para com o regime de então, apesar do pai ter sido uma das vítimas das purgas dos terríveis anos, que antecederam o início da Segunda Guerra Mundial. No próprio nome, Marlen, existe a associação de Marx e de Lenine, que os progenitores consideraram forma de homenagem aos dois líderes mais determinantes da ideologia comunista. A operação de desestalinização por parte de Kruschev não merecera do realizador qualquer simpatia por, a seu ver, mais importar a mudança na essência da vida do que dos seus símbolos. Como, por outro lado, também a perestroika e tudo quanto se lhe seguiu, o dececionou por ter orientado a Rússia numa direção, que não era decididamente a por si desejada.
Quase todo o filme acompanha Lena na progressão do desencanto com que testemunha o comportamento mesquinho de Volodia, eivado de um egoísmo onde só contam os seus interesses pessoais. Ao mesmo tempo cresce-lhe o interesse por Genia, um homem que se despojara do casaco impermeável num dia de julho para que ela pudesse com ele proteger-se na ida para o trabalho. E que depois lhe confidencia telefonicamente o desejo de aprofundar um relacionamento mútuo, que promete nada ter a ver com aquele de que ela vê necessidade de se descartar.
Alternando com as vicissitudes das personagens, Khutsiev dá-nos a ver Moscovo como raramente a conhecíamos até então. Não existem panorâmicas de grandes avenidas ou monumentos, porque ao realizador interessam bem mais os travellings, que fazem cruzar Lena com inúmeras pessoas, todas elas protagonistas de outras tantas histórias, que poderiam ser retratadas com a mesma importância à dela dedicada. Ou então a esses cruzamentos, que testemunham as vias possíveis por onde as personagens poderiam evoluir, nelas encontrando porventura as alternativas, que as atuais lhes não sugerem. Existem pequenos apontamentos de documentarismo, que muito revelam sobre o tipo de sociedade em que Lena se vê num tão insolúvel impasse!
O que seduziu os que redescobriram o filme em Locarno foi uma identidade original na forma de narrar uma história, propondo-lhes códigos de interpretação distintos daqueles a que nos habituáramos. Khutsiev insistiu nos rostos, nos olhares, nos gestos, que justificam aquilo que as palavras acabam por calar. E essa é uma linguagem cinematográfica que desconcerta, mas depois encanta.
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