Por razões familiares Grenoble é uma das cidades francesas de que mais gosto tendo-a conhecido numa altura em que parecia bem mais pacata do que acontecimentos recentes tendem a dar-lhe imagem algo insegura. Ainda que não esqueça ter sido ali que mais indícios de xenofobia testemunhei em lojas da FNAC ou da Orange.
De qualquer forma ficam-me na memória os passeios dados até à Bastille recorrendo às bolhas translúcidas, que possibilitam a travessia do Isère e a ascensão até à fortaleza em causa, ou o jantar de aniversário num restaurante de charme onde o mesmo anfitrião era cozinheiro, criado de mesa e entertainer. Desconhecia era ter sido cidade tão prezada por um dos meus mais apreciados pintores ingleses - Joseph William Turner - que tanto a desenhou e aguarelou nos seus blocos de apontamentos que, precisamente, entre os seus significativos legados estão precisamente os Cadernos de Grenoble.
Hélas que não o imitei em grandes passeios pelas montanhas em redor, cingindo-me ao vale entre as encostas alpinas, mas Turner aventurou-se e de que maneira: quase sempre sozinho, procurando os enquadramentos onde a paisagem melhor se ajustasse com a luz, para ele reflexo da existência divina. Pintor da natureza, da desmesura, da luz, do mar e do ar, todos os quatro elementos se encontram nos quadros, tendo-os procurado, amiúde, do lado de cá do canal da Mancha. Pelo menos dez foram as vezes em que o atravessou para procurar inspiração, que o dissociasse dos demais paisagistas. Porque se foi enquanto tal, que se viu consagrado, depressa ambicionou ir além dos contemporâneos, traduzindo os cenários panorâmicos com outro tipo de leitura visual. Daí que seja fácil concluir a importância da montanha, e dos Alpes em particular, na sua opção estética pela difusão da luz, que o tornariam reconhecido precursor dos impressionistas e o primeiro dos artistas modernos.
Grenoble terá sido o ponto de partida desse apuramento do estilo, quando aí chegou em 1802, e contava 27 anos. Logo na primeira abordagem, que lhe fez, sentiu-se-lhe a tentação de dissociar-se do figurativismo e tender para o que virá a ser o abstracionismo muitas décadas depois. Nas telas, que pinta no atelier, a partir dos esboços registados nos seus cadernos, existe a dramatização dos contrastes, que maior substância possibilitam às sombras. Pressentem-se as transparências do ar e a profundidade sugerida pelos relevos. As formas tendiam a dissolver-se atraindo ainda mais o espectador para dentro do próprio quadro.
Numa altura em que tendem a esfumar-se as possibilidades de voltar àquela cidade de tão gratas memórias, estou certo que, se ainda ali regressar, irei olhá-la, e para as montanhas em volta, com mais um filtro complementar: o dos quadros e esboços de Turner...
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