Desde miúdo que as histórias de Hans Christian Andersen se me tornaram familiares. Quem não cresceu com a empatia por esse patinho feio, que se via segregado por quase todos à sua volta sem perceber a razão para tanto desconforto? Ou o que dizer dessa menina dos fósforos, que morria de frio na última noite do ano depois de se tentar aquecer com todos os fósforos que não conseguira vender?
Inseriram o autor dinamarquês na categoria de contador de histórias infantis, mas quase todas elas nada têm a ver com os tradicionais relatos de príncipes e princesas, de magas e anões. Porque contém um lado trágico, que muito se coaduna com a própria biografia do autor, um homem que mentia quando considerava a sua vida igual a um conto de fadas, rica e feliz.
Enquanto os contos dos irmãos Grimm eram otimistas e inverosímeis, os de Andersen revelavam-se particularmente credíveis para os jovens leitores necessitados de encontrarem algum espelho para as suas próprias dificuldades. Sobretudo quanto mais elas parecessem tender para a tragédia.
A infância do escritor teve essa conotação dramática: nascido em Odense em 1805 numa família muito pobre partilhava uma exígua casa com os pais e com outros colocatários de escassos rendimentos. Sapateiro de profissão o progenitor tinha escassa clientela, o que não o impedia de muito se interessar pelas coisas da cultura e da política. Foi ele a estimular no filho o gosto pela imaginação chegando-lhe a construir um pequeno teatro de marionetas para, em conjunto, criarem estórias relacionadas com os assuntos do quotidiano.
Infelizmente a época era a das guerras napoleónicas para as quais o pai se viu mobilizado e donde regressou tão doente, que cedo se finou, apenas com 34 anos. A viúva viu-se então obrigada a agarrar-se aos trabalhos, que podia, sendo o mais constante o de lavadeira de roupa alheia no rio. Ora, para suportar os rigores do clima gelado, ingeria vinho em quantidades crescentes, que a transformaram numa incurável alcoólica.
Apenas com 14 anos Hans partiu para Copenhaga, sem vintém nem ninguém a quem pedir ajuda, mas decidido a sobreviver, se possível como ator de teatro, porque o prazer das histórias inventadas pelo pai suscitara-lhe o gosto pelo imaginário.
Não conseguiu singrar na interpretação de papéis nos palcos, apesar de uma ou outra experiência como figurante, mas vingar-se-ia anos mais tarde quando eles acolheram as suas peças. No entretanto encontrou benfeitores, que o ajudaram e lhe garantiram as condições para se vir a dedicar à literatura.
Algo mais explicará esse improvável sucesso? Muito se discute sobre a homossexualidade deste escritor, que nunca casou e, nos casos em que pediu casamento a possíveis noivas já elas estavam comprometidas com outros, delas recebendo expectáveis negativas. A história do patinho feio é por muitos interpretada como metáfora de um frustrado enclausuramento num armário impossível de se abrir tão puritana era a sociedade dinamarquesa de então. A mesma no fundo em que Karen Blixen situaria a tal Babette, criada francesa fugida da Comuna de Paris e capaz de sujeitar os patrões e seus vizinhos a rude tentação com os petiscos, que lhes preparou numa festa de despedida. E também na pequena sereia podemos senti-la como sua alter ego, porque mesmo salvando o príncipe por que se enamorou, a personagem nunca conseguiria lugar na sociedade dos humanos para onde desejaria migrar.
Se Andersen se viu reduzido à condição de socialmente assexuado, terá encontrado nas viagens a sua catarse. Tão-só começou a ter meios financeiros para tal nunca deixou de deambular por toda a Europa embora se ficasse pela Espanha e por Marrocos, quando se virou para este lado ocidental do continente. Delas sempre regressou com cadernos de viagem recheados de notas e de desenhos, que poderia utilizar nos contos e peças de teatro, que criaria a seguir.
Muito doente ainda arriscou uma derradeira viagem à Suíça em 1875, mas acabou por morrer tão-só regressado a casa, deixando um legado ficcional, que ainda promete conhecer longa vida junto das gerações vindouras. Sobretudo porque muito glosando a injustiça e as desigualdades, essas histórias continuam a ser intemporais.
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