É tão condenável a mentira! Há até quem a considere um crime! O problema é ser tão difícil nunca mentir! Nessas circunstâncias esse condicionalismo implica estarmos condenados a comportarmo-nos mal ou será que deveremos olhar para a mentira de outra forma que não a de um pecado?
Meriam Korichi vai buscar a Santo Agostinho um trecho em que ele refere o prazer sentido pelo mentiroso quando mente. No ensaio Mentir, La vie et son double ela pretende dissociar a mentira do exclusivo âmbito moral em que o filósofo pré-medieval a cingiu, aliás de acordo com o que vem acontecendo há vinte séculos de tradição cristã.
Anterior ao autor das Confissões há a assinalar a escultura em mármore colocada no pórtico de Santa Maria in Cosmedin em Roma já no século XVII e que, fazendo jus ao nome por que é conhecida, La Bocca della Verità, seria uma espécie de poligrafo: a boca aberta rapidamente se fecharia no momento em que alguém ali pusesse a mão e voluntariamente dissesse uma mentira. Mas não existem situações em que possa haver sinceridade em quem ali diz acreditar que a Terra é plana, mesmo que quase todos nós saibamos tratar-se de uma mentira? Em tal situação, o que nortearia a decisão da boca: respeitaria a sinceridade do crente na platitude da Terra ou balizar-se-ia pelo conhecimento científico capaz de demonstrar a sua disparatada ilação?
O problema é a realidade ser de tal forma tão complexa, que a verdade pode ser muito relativa, forçando quem a descreve a mentir por omissão. Algo comum nos tribunais onde as testemunhas deverão dizer a verdade, mas calam, consciente ou inconscientemente, o que puderam constatar.
Há, igualmente, quem construa toda uma realidade em torno de uma mentira como aconteceu no célebre caso do falso médico suíço - Jean Claude Romand - que matou toda a família, quando estava iminente o seu desmascaramento face à imagem de sucesso profissional e social, que construíra até aí e não quereria ver descoberta pela mulher, pelos filhos e pelos sogros.
Para grande surpresa de Emmanuel Carrère, que quis escrever um romance sobre o caso e contactou entrevistar o homicida, ele desconhecia afinal a sua verdade, porque tal lhe era vedado pela própria mitomania.
O que nos remete para o artigo de capa de Serge Halimi e de Pierre Rimbert na edição deste mês do Le Monde Diplomatique em que se contesta um certo jornalismo dito de esquerda, incapaz de compreender as razões porque, ao contrário, da sua estafada tese, não foram os homens brancos de muito altos ou muito baixos rendimentos a garantirem uma inacreditável votação em Donald Trump nas mais recentes eleições norte-americanas, porque muitos negros e latinos nele depositaram o seu voto. Ou também para a conferência de imprensa de Anthony Fauci desta semana, quando apelava aos compatriotas para que tomassem as vacinas porque, ao contrário do divulgado pela demagogia QAnon ,não haveria forma de Bill Gates nelas inserir uma qualquer mensagem algorítmica capaz de modificar a americanidade dos que a ingerissem. De facto, a mentira disseminada pelos populistas adquire um tal nível de mitomania, que não se distingue grandemente da visão assassina do médico suíço. Porque a realidade, tal qual a veem, em nada coincide com quem a olha pelas lentes da mais básica racionalidade.
A mentira torna-se ainda mais complicada de considerar perante o famoso paradoxo do mentiroso. Porque, se alguém nos diz sê-lo, qual é a verdade? Estará a sê-lo quando o diz e, nesse caso, estará afinal a ser verdadeiro?
A concluir o seu ensaio, e depois de contrariar a exclusividade moral da análise da mentira, Mériam Horichi apresenta-a no seu potencial criativo, que a aproxima de verdadeira obra de arte. E é ao mostrar-se mestre nessa mesma arte, que Trump conseguiu ser tão bem sucedido. O que, por outro lado abre um ponto de partida alternativo para melhor lhe neutralizar os esforços, tanto mais que se demonstrou totalmente estulta a possibilidade de o conseguir com a persistente, mas ineficiente, acusação de se tratar de impenitente mentiroso.
Tratar-se-á afinal de amoralizar a mentira! Porque, despojado do filtro da moral, a mentira passa a ser uma ficção, que pode combatida enquanto tal. Sendo verdadeira numas circunstâncias e falsa noutras de acordo com o que o combate político possa discernir.
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