quinta-feira, março 11, 2021

(G) O lado antropológico dos frescos de Miguel Ângelo

 

Só uma vez tivemos a oportunidade de apreciar os frescos de Miguel Ângelo na Capela Sistina. Estávamos numa daquelas viagens organizadas por agências de viagens em que os guias impõem os ritmos a investir em cada etapa do programa de cada dia. Se nesse périplo escapámos-lhe em Florença para vermos os Uffizi com a devida disponibilidade, em Roma não nos atrevemos a tal, até por sermos empurrados pela multidão, que tínhamos pelas costas. E, no entanto, sabemos bem quanto seria estimulante essa experiência mais demorada. Até para tudo olharmos com vários filtros, outros tantos olhares.

Num documentário, que integrou o diário consumo de imagens em movimento, demos com uma perspetiva curiosa, porque focalizada na análise antropológica de alguns dos personagens criados pelo artista.  Giovanni Careri, o investigador, que a propõe, focaliza-se nos que diziam respeito aos que haviam antecedido Jesus Cristo: velhos melancólicos, uma grávida, outras mulheres a ocuparem-se dos filhos. Sempre entendidas como gente anónima cuja presença ficaria justificada pela necessidade de dar representação aos usos e costumes dessa recuada época. Mas afinal podem revelar bastante sobre a relação entre o cristianismo e judaísmo.

Os judeus sempre se puseram à margem do mito da Encarnação em que nunca acreditaram. A atitude de prostração, de evidente fadiga desses personagens, podem traduzir tal incredulidade quanto à revelação da condição divina do Cristo. Essa hipótese encontra fundamento nos trabalhos de restauro  dos anos oitenta, que revelaram detalhes apagados pela patina do tempo: braçadeiras ou círculos amarelos então ostentados pelos judeus como símbolos infames de segregação.

Miguel Ângelo ter-se-á autorretratado no tardiamente convertido São José, em coerência com o revelado nos seus poemas em que confessava a melancólica dificuldade em ser um «bom cristão». Nesses frescos, destinados a glorificarem o cristianismo, acaba por introduzir elementos de tédio e dúvida, que contrariam as intenções do papa que lhe encomendara a obra.

Mas não só: as cenas do «Julgamento Final» causaram grandes debates entre os teólogos do século XVI pelos nus explícitos  considerados impróprios para um templo cristão. Mas Miguel Ângelo limitara-se a impor a autonomia artística inerente ao prestígio já conseguido em Florença com o seu David. Descreviam-no já então como “terrível”, ou seja aquele tipo de homem capaz de, ao mesmo tempo, suscitar o medo e o respeito...

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