Tem sido excelente notícia a da reedição de obras da antiga coleção do Livro B, que costumava ler há décadas, quando o fantástico me interessava bem mais do que hoje e aqueles livrinhos de capa preta e páginas azuladas me devolviam ao universo criativo de muitos dos melhores escritores do género, quer do princípio do século XX, quer do anterior.
No caso de «O Rei de Amarelo», que a E-Primatur relançou novamente nas livrarias, temos mais do que um romance sobre um fenómeno sobrenatural: a possibilidade de alguém morrer por fazer algo de tão anódino como ler uma peça teatral ou mergulhar numa estranha solução conservada numa banheira. Pelo extrato aqui aduzido de um dos contos da antologia fica a noção de quão bem escrito está, muito embora o suspeito Lovecraft apontasse a Robert W. Chambers a possibilidade de escrever bem melhor do que aquilo que acabava por publicar. Se calhar o visado deu-lhe razão, porque logo abandonou o género e quis fazer nome numa suposta formulação académica do romance histórico. Mas neste caso em concreto - o do título que melhor terá contribuído para a sua razoável posteridade - suscita-se o prazer da leitura enquanto entretenimento inteligente em que sobretudo se admira a imaginação com que se pode dar versão alternativa à nossa comezinha realidade.
Extrato de «O Rei de Amarelo»:
Embora não percebesse nada de química, eu ouvia fascinado. Ele pegou num lírio japonês, que Geneviève trouxera essa manhã de Notre-Dame, e depositou-o num recipiente. Nesse mesmo instante, o líquido perdeu a sua nitidez cristalina. Em segundos, o lírio foi envolvido por uma espuma branca semelhante a leite, a qual desapareceu deixando um fluido opalescente. Sobre a superfície sobrepuseram-se tonalidades de laranja e carmesim, e então o que parecia ser um raio puro de luz solar projetou-se a partir do fundo, onde o lírio repousava. No mesmo instante, mergulhou a mão no recipiente e retirou a flor.
— Não há nenhum perigo — explicou — se conseguir escolher o momento certo. Aquele raio dourado é o sinal.
Aproximou o lírio de mim e eu peguei-lhe. Tinha-se transformado em pedra, no mais puro mármore.
— Veja — disse —, sem qualquer falha. Que escultor poderia reproduzi-lo?
O mármore era branco como a neve, mas nas suas profundezas os veios do lírio estavam tingidos de um pálido azul-marinho, e um leve rubor permanecia bem profundo no seu coração.
— Não me pergunte a razão para tal — sorria perante o meu espanto. — Não percebo porque motivo os veios e o coração ficam tingidos, mas acontece sempre o mesmo. Ontem experimentei com um dos peixes dourados de Geneviève – ali está.
O peixe parecia esculpido em mármore. Mas se o aproximássemos da luz, a pedra via-se maravilhosamente cheia de estrias de um pálido azul-marinho, e algures do interior surgia uma luz rosada como a que repousa na opala. Olhei para o recipiente. Uma vez mais, parecia repleto do mais puro cristal.
— E se eventualmente o tocasse agora? — perguntei.
— Não sei — respondeu. Mas é melhor que não tente.
— Ainda há uma coisa que me deixa curioso: de onde veio o raio de sol.
— Parecia um raio de sol, de verdade — exclamou. — Não sei, aparece sempre que submerjo qualquer coisa viva — prosseguiu, sorrindo. — Talvez seja a centelha vital da criatura a escapar para a fonte de onde teve origem.
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