sexta-feira, dezembro 31, 2021

O QAnon nos antípodas (e também por cá?)

 

1. A princípio começaram a ser afirmações estranhas, que Karen Stewart não levou muito a sério. Estaria o irmão a brincar com ela testando-lhe a lucidez? Mas logo viu a cunhada e o sobrinho a replicarem o que ele teimava com crescente insistência: que uma elite pedófila tomara conta do mundo e havia que a combater como forma de salvar as criancinhas sujeitas a violações ou a rituais satânicos de feição vampiresca. E, como ela própria fora violada aos catorze anos por dois acólitos da igreja local, procurava associá-la ao seu militantismo conspirativo.

Às tantas a distância de crenças de Ted, da mulher e do filho com o resto da família tomou tão avassaladora dimensão, que deixaram de aparecer. Porque as discussões eram intensas e nunca delas saíam vencedores.

O pior foi Karen conhecer a proximidade antiga do irmão com o primeiro-ministro Scott Morrison, que alegava influenciar como sua marioneta para abreviar a chegada do Grande Despertar. E o político andava a dar-lhe razão ao inserir nos discursos algumas passagens a contento dos sectários do QAnon: por exemplo a de terem existido “rituais satânicos” contra as vítimas de abusos e violações como as padecidas por Karen dentro das instituições religiosas australianas.

No Senado há quem leve muito a sério esse conúbio e o queira esclarecido. Porque quem anda a denunciar a existência de um Sistema passível de ser derrubado (aqui também replicado no Ventura do Chega e em Rui Rio) já não pode ser desvalorizado ao nível dos que defendem a platitude da Terra. Como se viu com a invasão do Capitólio no início do ano em curso, essa gente é perigosa ao deixar-se manipular por quem a sabe dócil carne para canhão, quando se trata de defender os seus inconfessáveis interesses.

2. E, no entanto, nem mesmo os impérios destinados a existirem por mil anos conseguiram perdurar por mais de uma dúzia de anos a assassina vocação. Ao revisitarmos os impressionantes desfiles em Nuremberga, tais quais Leni Riefenstahl os encenou, surge inevitável a suposição do que terão sentido os grandes dignitários nazis, quando neles participaram entre 1933 e 1938. Terão Hitler, Goering ou Himmler confiado na sua invencibilidade? Julgariam repetir-se as circunstâncias excecionais, que os tinham levado ao poder graças às rivalidades palacianas entre o general Kurt Von Schleicher e o ambicioso Franz Van Papen sob o beneplácito do presidente Hindenburg?

Muitos milhões de pessoas morreram como consequência da desmedida apetência pelo poder absoluto e muitas outras ficaram traumatizadas para o resto das suas vidas, mas quem o quis personificar não teve melhor sorte abreviando-se-lhe o fim e adornando-se-o com indelével ignomínia. E, no entanto, olha-se para os partidos e militantes da extrema-direita e somos levados a questionar: não aprenderam nada com a História do século XX? Não percecionam para onde seriam levados se condições favoráveis os devolvessem a essa sensação de invencibilidade dos antecessores nazis? Infelizmente temos de reconhecer que a essa hipótese se fazem cegos, surdos e mudos. 


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