sábado, janeiro 29, 2022

A lucidez do nosso excecional Nobel


Fizemos coincidir a campanha eleitoral com a releitura de «Ensaio sobre a Lucidez», que José Saramago publicou em 2004 para grande escândalo dos que não apreenderam o seu sentido alegórico e, precipitadamente, quiseram entendê-lo como um apelo abstencionista.

É certo que, por preconceito ideológico, os detratores do nosso Nobel não se escusam a lê-lo às avessas do por ele pretendido. Daí a rapidez com que o julgaram a abandonar a validade num determinado sentido de voto só porque, nesse romance, a grande maioria dos eleitores da capital votaram em branco num escrutínio, que deixou os governantes à beira de um ataque de nervos. Porque não podiam ver outra interpretação possível para o sucedido, que não fosse uma conspiração antidemocrática, quiçá enquadrável numa estratégia terrorista, que punha em causa os fundamentos constitucionais do regime. Daí que governo, polícia e outras autoridades saiam da cidade e entre ela e o exterior criem uma fronteira intransponível até mesmo para os que tinham votado e pretendiam exilar-se do lado de lá dos que haviam expressado tão singular forma de participação política.

Numa ligação intencional com outro grande romance, publicado nove anos antes  - «Ensaio sobre a Cegueira» - Saramago faz da mulher do médico, a única que não cegara quatro anos antes enquanto todos à sua volta tinham ficado afetados pela inexplicável epidemia, o bode expiatório mais a jeito para dar fundamento a essas teorias, sobretudo construídas pela sinuosa mente do ministro do interior, alicerçado na denúncia de um salafrário.

A releitura dos romances de Saramago está a constituir um enorme prazer, porque lido em voz alta pela Elza para nosso mútuo benefício. Dando assim azo a melhor ponderarmos na musicalidade na construção das frases, mas sobretudo nas muitas pistas de reflexão sugeridas pelo autor.

Neste projeto, que se prolongará ano adentro como forma de, a nosso jeito, participarmos na comemoração do seu centésimo aniversário, só vamos reencontrando as muitas razões para justificar o merecido preito decidido pela Academia Sueca.

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