Mas este romance de 2006 diferencia-se de quase todos os demais escritos por Mankell por constituir uma espécie de antecipado testamento, embora ele lhe sobrevivesse mais nove anos. Mas como não ver no protagonista, o antigo cirurgião Fredrik Welin, um alter ego do autor? Porque refugia-se como misantropo numa das pequenas ilhas bálticas do Arquipélago depois de uma operação mal sucedida, que lhe aviva a incurável má consciência, algo de semelhante terá acontecido a Mankell, que tanto acreditou e participou culturalmente na revolução moçambicana pós-independência e a viu definhar até à atual degenerescência.
Aos sessenta e seis anos Fredrik costuma mergulhar diariamente num buraco aberto no gelo à beira da margem para provar a si mesmo estar vivo. Inesperadamente vê o rotineiro quotidiano abanado por Harriet, a namorada que muito amara quarenta anos antes, mas a quem abandonara sem explicação. Ela vem agora, com a ameaça do galopante cancro a condicioná-la, cobrar-lhe promessa então feita: de levá-la à beira de um lago no norte do país e cuja paisagem qualificara de inexcedível.
Está iniciado um périplo em que estão em causa o amor, a perda, a redenção e a autodescoberta. Porque nesse intervalo em que se sucedem dois solstícios de inverno e um de verão encontram homens e mulheres também a contas com os seus medos e solidões.
É uma dádiva preciosa o que Harriet veio proporcionar a Fredrik, porque no regresso de tão edificante viagem ele descobre já não sentir vontade em viver sozinho na sua ilha e ter por únicas companhias a velha cadela e a velha gata ou as episódicas visitas do carteiro hipocondríaco. Voltar para junto dos familiares constitui um imperativo, porque deixa de ter a necessidade do quotidiano banho gelado para se sentir vivo.
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