Há aquele homem, de pé sobre a precipício, a virar-nos ostensivamente as costas. Pose frequente nos quadros de Caspar David Friedrich, que convidava-nos a olhar as paisagens com os seus personagens em vez de lhes darmos a específica importância. Porque ele pede que nos cinjamos à contemplação, porventura para melhor termos consciência de nós mesmos. Porque o cenário é um espelho, que reflete quem o olha, independentemente do que representa em si mesmo.
Depois há aquela névoa, que não chega para esconder outras montanhas, que ali se justapõem e serão tão acidentadas quanto aquela donde o viajante as vê. E eis-me estimulado para a memória daquele fim de tarde em que tivemos igual experiência ao ascendermos à Arrábida com outros caminhantes e tudo quanto abaixo se situava ficou-nos tapado por um ainda mais espesso manto de nuvens.
Que experiência essa em que, pelas seis da tarde de um dia de verão, avançámos para a noite no alto da montanha e com focos de luz pendurados nas cabeças, olhámos para a Natureza de uma forma tão nova. E o quanto ela nos andou escondida, porque as fotografias então captadas, revelaram outro tipo de nuvens, as de pólen, que por ali vagueavam à nossa volta sem que delas déssemos conta no nosso deambular.
Talvez seja esse tipo de memória, que melhor me incutiu a ideia de ser o quadro de Friedrich um dos mais belos, que conheço. Porque sou capaz de apreciá-lo duradouramente numa evasão mental, que se projeta para infinitas associações. E encontro-me nesse juízo com muitas outras pessoas igualmente fascinadas por tal obra. Porque se o artista considerava que deveria pintar não só o que estava à sua frente, mas também o que via dentro de si - e por isso estava de acordo com uma das preocupações maiores do Romantismo - o que o espectador colhe é uma súmula de emoções, que muito têm a ver consigo mesmo.
É que, independentemente de noutras alturas, tender a pensar noutras hipóteses, neste preciso momento olho para o viajante e assumo-me como sua réplica nesta altura da vida a contemplar tudo quanto vivi e fica para trás e o quanto se depara à minha frente, por razões óbvias de idade e de saúde, previsivelmente enevoado.
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