domingo, novembro 30, 2025

Um policia à procura da verdade

 

No dia em que casámos, eu e a Elza zarpámos da boda e fomos para Lisboa rumo ao Teatro Maria Matos para ver o Raul Solnado personificar o Soldado Schweik. Se o considerávamos um competente intérprete de comédias, mesmo se às vezes servido por textos que desmereciam o seu talento, foi em papéis de outra ambição, que o vimos expressar competências, que o guindaram ao pedestal de um dos grandes atores lusos do século passado. "A Balada da Praia dos Cães" é disso superlativa demonstração.

Adaptação do romance homónimo de José Cardoso Pires, publicado em 1982, o filme de José Fonseca e Costa (1987) parte de um engenhoso argumento construído como um inquérito policial, que surpreende pela eficácia narrativa. Mas é também, como tantos filmes de Fonseca e Costa, um retrato de um país feito à escala da mesa de jantar, onde os problemas se atropelam com as crises, os egos, as vontades e as relações interpessoais que atrapalham, condicionam e derrotam as lutas ainda antes de estas se poderem concretizar.

O filme abre com uma das imagens mais marcantes do cinema português: um travelling na praia até junto dos cães que rodeiam o cadáver de um homem. Fonseca e Costa pretendia que esta imagem servisse de metáfora para a incursão do filme nas agruras do Portugal fascista - como escreve Cardoso Pires no romance, feras "tão apostadas na sua tarefa que se abocanhavam entre eles por cima do corpo do morto." Este é identificado como tendo sido o Capitão Luís Dantas, um oficial do exército revolucionário procurado pela pide, desde que fugira da prisão militar do Forte de Elvas.

No centro do filme - e da sua produção - está um conflito sobre a verdade. Cardoso Pires havia sido alvo de acesas acusações de liberdades literárias sobre um caso real que motivara politizadas opiniões, tanto na altura dos factos (início dos anos 60) como aquando do lançamento do livro (1982). José Fonseca e Costa procurou clarificar a diferença fundamental entre o livro e o filme: "o livro faz dos acontecimentos de 1960 na Praia do Mastro uma espécie de premonição daquilo que em 1974 se viria a dar com o 25 de Abril, e o filme ignora isso para dar muitíssimo mais importância às relações de natureza dramática que se estabelecem entre as personagens."

Cardoso Pires não ficou satisfeito. "Esperava dele uma maior liberdade de interpretação, uma maior liberdade no olhar. Esperava que o filme me trouxesse um pouco mais de novidades. Por isso mesmo fiquei um pouco frustrado", disse em 1991. Mas essa divergência é, em si mesma, reveladora de duas formas diferentes de pensar o país e o crime: Cardoso Pires fazia do caso um comentário ao conflito latente entre moral e real, "com a unha rutilante bem no centro dum texto policial"; Fonseca e Costa entendia que "todas as imagens que se põem num filme se completam umas às outras", e que um filme precisa de "organização da narrativa cinematográfica."

Para o realizador, "nunca se sabe ao certo se aquilo que se está a contar é verdade ou mentira." E a introdução central da personagem da mãe (Carmen Dolores), que se afasta do romance, aproxima o filme do que terá realmente acontecido - uma figura "organizadora de todas as coisas e capaz de resolver todos os conflitos", como tantas vezes acontecia num país que resolvia tudo à 25ª hora, com expedientes de recurso. É um recurso que é uma verdade, ou um modo de tornar verosímil o que possa ter acontecido.

No centro do filme está Elias Santana, o Chefe de Brigada convocado para decifrar se o cadáver é consequência de um crime político ou passional, enquanto a PIDE espreita à espera de uma resolução. Raul Solnado oferece aqui uma interpretação superlativa - "contra o escritor, o público, mas sabiamente cúmplice com o realizador", como nota Tiago Bartolomeu Costa. É um dos seus mais notáveis papéis dramáticos, longe da comédia que o tornara popular.

Solnado constrói Santana como um homem solitário, meticuloso, obstinado. Cardoso Pires escreveu que ele "se entretém a deambular pelas margens à procura doutras luzes e doutras reverberações." Fonseca e Costa filma-o cercado por uma "presença constante e obsessiva de elementos que impede que as pessoas fujam dum cerco, do cerco que para [si] era este país no tempo do fascismo."

A investigação é tortuosa, feita de reconstituições reais e imaginadas. O argumento é intercalado entre dois momentos temporais: o que aconteceu antes da morte do Capitão Dantas e a linha de investigação encabeçada por Santana. Surgem cenas de reconstituição - algumas reais, outras imaginadas - ao que terá sucedido. E no centro dessa teia de ambiguidades está Mena (Assumpta Serna), a mulher misteriosa que ajudou os fugitivos e que mantinha uma relação complexa com Dantas.

Jorge Leitão Ramos considera que o melhor do filme "está nessa mulher que Assumpta Serna encarna com comedida volúpia e mistério." Mena aparece ora como uma mulher arisca e segura de si, ora submissa e insegura, numa relação que Santana não consegue aceitar. Porquê a passividade de Mena? Qual a atração entre os dois? Ao longo dos vários inquéritos depois da morte de Dantas, Mena não parece a mesma rapariga que aceitaria uma relação como a que transpira ao longo da investigação - e pode estar ali a chave do mistério, do filme, da tal crise de identidade do país.

"É muito difícil fazer filmes que retratem a realidade portuguesa sem trazer ao de cima tudo o que a determina e condiciona", disse Fonseca e Costa. "Balada da Praia dos Cães" apresenta um país parado no tempo mas à beira da ebulição, com as suas personagens cercadas por suspeitas, num estado de indefinição suspensa. Um Portugal enclausurado pelo moralismo e intimidação do regime salazarista, onde as relações se estabelecem sempre sob o peso da vigilância, da desconfiança, do medo.

O realizador dirá que "os ficcionistas são homens que andam encarniçadamente à procura do que é a verdade, o que torna um bocadinho contraditória a sua própria atividade, porque a verdade não existe." E é essa consciência que atravessa o filme: não há respostas definitivas, não há culpados claros, não há verdade única. Apenas versões, possibilidades, especulações.

A profusão de hipóteses e de culpas tem, neste como noutros filmes de José Fonseca e Costa, o amargo fel da derrota. Como se a corrosão das paredes fosse o que de mais próximo mostrasse aquilo em que nos tornáramos: uma ruína com vista para o mar. Um cinema ambíguo que "significa dar todas as possibilidades de leitura ao espectador", perguntando sempre: "Onde é que estará a verdade? Quem é o detentor da verdade?"

"Balada da Praia dos Cães" é um exemplo raro de um filme que consegue ser comercial mas inteligente e complexo, que exprime ao mesmo tempo uma visão própria do realizador sem alienar parte do público. Como disse o crítico Jorge Leitão Ramos, José Fonseca e Costa foi o único cineasta da sua geração "a conseguir conciliar a vontade do público com o facto de querer fazer um cinema de autor."

Filmado em 1986, numa coprodução luso-espanhola, com exteriores rodados na Praia da Figueirinha (Serra da Arrábida) e interiores no Palácio da Quinta da Comenda (Setúbal), o filme foi visto por quase 82 mil espectadores em Portugal - um sucesso considerável para a época. A música de Alberto Iglésias contribui para criar essa atmosfera de sinuosa tensão política e passional que atravessa toda a narrativa.

Sem respostas, inconclusivo, ambíguo ou especulativo, "Balada da Praia dos Cães" surge como mapa emocional e político de um cinema a olhar para aquilo que o país foi, tentando encontrar no lastro que a democracia começava a criar as razões para ter sido como foi. E Raul Solnado, no centro desse labirinto de mentiras e meias-verdades, prova que era muito mais do que o comediante popular que o público conhecia. Era, de facto, um dos grandes atores portugueses do século XX.

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