Tal como é sabida a regra de não devermos voltar aos sítios onde fomos felizes, porque essa benesse será quase impossível de repetir-se, também pode-se considerar injustificado o regresso onde tivemos uma experiência traumática. Porque essa sim, mais do que repetir-se pode exponencializar-se.
É precisamente isso que acontece em "Sol Cortante" (2017), das irmãs Clara e Laura Laperrousaz. Gabriel e Iris (Clément Roussier e Ana Girardot) regressam à casa de família dele, no Alentejo, para passar as férias de Verão com as filhas Emma e Zoe (Océane e Margaux Le Caoussin), gémeas de seis anos de idade.
Depois de vários anos de ausência, os quatro aproveitam a calma e mansidão dos dias. Entre banhos de rio e o riso das crianças, tudo parece idílico. Até que Emma descobre a fotografia de uma menina desconhecida, depois uma boneca, e começa a fazer perguntas. É então que Iris revela um segredo pesado. E o passado, até ali adormecido, ressurge para destruir a harmonia familiar.
Construir um filme que seja tão solar na fotografia e ao mesmo tempo tão negro na sua natureza dá origem a uma obra sob uma aura de assombração muito particular. "Sol Cortante" começa como um quadro de beleza campestre ao som do riso de crianças e transforma-se devagarinho numa crónica sobre a desconstrução de uma família.
O trabalho de fotografia de Vasco Viana capta a paisagem como se um paraíso isolado se tratasse - o prado e os riachos assemelham-se a pedaços do amanhecer, os grandes espaços são filmados à maneira dos westerns com um belo trabalho sobre a concordância de cores. Os jogos de luz que brincam com a escuridão da noite versus a luz artificial transformam-se em planos carregados de simbolismo. A música de Giani Caserotto parece entrar em fusão com essas vastas extensões.
Todos os atores encontram-se totalmente emaranhados nas personagens, diluindo-se nelas. As duas gémeas chegam a ser um pequeno milagre - as realizadoras procuraram a espontaneidade das crianças, evitando fazê-las aprender o texto, e o resultado é serem muito verosímeis.
No entanto, o argumento peca por redundância. Puxa e repuxa ideias que já tinham sido passadas, tentando forçar a tristeza em situações melodramáticas. O que começa por ser subtil e extremamente inteligente converte-se no extremamente dramático e previsível, retirando profundidade e peso à mensagem. Por vezes parece "tourner en rond", como nota um crítico francês, apoiando um pouco demais certos efeitos ou símbolos. A expressão "beating a dead horse" ajusta-se à medida que os últimos minutos avançam, levando-nos a uma desenlace superficial e pouco credível. Dá como resolvidas as tendências tóxicas das personagens, falhando totalmente em apontá-las ou trabalhá-las, ou em considerar as cicatrizes incuráveis que estes comportamentos irão deixar.
"Sol Cortante" falha na criação de um quadro satisfatório sobre uma família em ruína. Mesmo tratando-se de uma história comovente e até familiar, vestida de uma fotografia de tirar o fôlego, perde infelizmente tato e credibilidade a meio do caminho. Não deixa, no entanto, de ser uma tentativa com mérito - especialmente se considerarmos que é a segunda longa-metragem das duas realizadoras.
A regra mantém-se: não se deve voltar aos lugares do trauma. Nem na vida, nem no cinema. Ou, se se volta, é preciso ter a coragem de enfrentar verdadeiramente o que lá ficou enterrado - e não apenas roçar a superfície antes de procurar um final reconciliador que a própria narrativa não sustenta. O Alentejo filmado pelas irmãs Laperrousaz é belíssimo. Mas a beleza da paisagem não é suficiente para redimir os fantasmas que a habitam.

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