Era um filme, que deixara passar, e assumira como de visão obrigatória tão só o tivesse a jeito. Aconteceu agora e correspondeu inteiramente às expectativas: uma abordagem original do cinema de um realizador, ele mesmo autor de um trajeto muito à parte do que costuma ser o cinema convencional.
"Sacavém" (2019), de Júlio Alves, não é o rotineiro documentário sobre um artista - neste caso o cineasta Pedro Costa - nem tão pouco uma visão equilibrada da sua obra. Entre outros méritos, dialoga com essa figura maior do cinema contemporâneo sem recorrer às habituais cauções: depoimentos de terceiros, evocação de prémios e reconhecimento crítico, entrevistas contextualizadoras. Nem procura mimetizar o cinema de Pedro Costa, o que seria a tentação mais óbvia e também a mais falhada.
Júlio Alves encontra a distância justa para ler essa obra sem o peso da reverência ou do pastiche. E fá-lo através de uma estratégia inesperada: filmar os objetos. Não as pessoas, não os lugares (embora eles também estejam lá), mas os objetos determinantes na filmografia de Pedro Costa. O filme parte da investigação de doutoramento de Júlio Alves sobre "Os Objetos no Cinema" e transforma-se num ensaio sobre a materialidade do cinema costiano - sobre como certos objetos atravessam décadas de trabalho, carregando memórias, fantasmas, continuidades.
A câmara digital usada em "No Quarto da Vanda" (2000) é o primeiro. Aquela pequena câmara que democratizou as ferramentas e permitiu a Pedro Costa dois anos de filmagem solitária, entrando e saindo do quarto de Vanda Duarte enquanto ela vivia (e quase morria) entre a heroína e as conversas infinitas. A câmara como extensão do corpo, como testemunha discreta, como possibilidade de um cinema que não precisa de equipa nem de dinheiro - apenas de tempo, paciência, obstinação.
O caderno de "Casa de Lava" (1994) vem a seguir. Não uma réplica, mas o caderno original, com colagens, apontamentos, desenhos. É o objeto que marca uma viragem no método de trabalho de Pedro Costa - o momento em que o cinema deixa de ser apenas rodagem e montagem para se tornar também preparação artesanal, construção lenta, pensamento visual antes da imagem. Júlio Alves filma-o como se fosse uma relíquia, mas sem solenidade. Apenas mostrando que ali, naquelas páginas, já estava tudo: o que viria a ser filmado em Cabo Verde, o que viria a marcar o cinema português para sempre.
O elevador de "Cavalo Dinheiro" (2014) surge depois, num dos momentos mais extraordinários do filme. O cenário tinha sido guardado num armazém em Sacavém - daí o título do filme de Júlio Alves. E ele filma-o lá, parado, fantasmático, fora do seu contexto original. Mas não se fica por isso: há uma sequência onde projeta a cena de "Cavalo Dinheiro" contra o próprio elevador físico, e Pedro Costa aparece surpreendentemente dentro dele. É uma mise en abyme perfeita - o objeto real, a imagem projetada, o realizador entre ambos. Uma forma de dizer que o cinema de Pedro Costa existe nessa zona intermédia entre o material e o espectral, entre o documento e o sonho.
O bairro das Fontaínhas é pensado também como objeto. Não filmado diretamente (já não existe, foi demolido), mas através de fotografias de Mariana Viegas. Júlio Alves transforma aquelas imagens em arqueologia - o bairro como ruína, como memória, como fantasma que assombra todos os filmes de Pedro Costa mesmo quando já não está lá. As Fontaínhas não são apenas um lugar: são uma ideia, uma presença, uma ferida.
E há a carta de Robert Desnos, escrita em 1945 poucos meses antes de morrer no campo de concentração de Theresienstadt, e que aparece em "Casa de Lava" ou explode em "Juventude em Marcha" (2006), recitada por Ventura numa das mais belas cenas do cinema português. Júlio Alves mostra-a, filma-a, deixa-a respirar. Mais uma presença que atravessa o tempo e os filmes.
Pedro Costa impôs uma condição a Júlio Alves: não aparecer. Queria que o filme fosse sobre os objetos, não sobre ele. Mas depois acabou por surgir, discretamente, filmado entre espelhos e sombras, sempre de relance, nunca central. Essa presença esquiva é exemplar de uma ética de trabalho solitária e artesanal de que os filmes são o testemunho mais eloquente. Pedro Costa não é um realizador que se exponha, que explique, que teorize em frente à câmara. É um artesão que deixa os filmes falarem por si - e os objetos também.
"Sacavém" respeita isso inteiramente. Não transforma Pedro Costa em "estrela" do documentário, não o coloca no centro a explicar o seu método. Deixa-o à margem, como ele gosta de estar. E essa discrição é uma forma de honestidade: mostra que compreendeu o cinema de Pedro Costa não apenas nos filmes, mas na forma como eles são feitos.
O que Júlio Alves ilumina é a continuidade entre a visão do realizador e o mundo que lhe serve de matéria. Pedro Costa não filma "temas" ou "personagens" de forma abstrata. Filma pessoas concretas, com objetos concretos, em lugares concretos - e esses objetos, pessoas e lugares atravessam os filmes como presenças recorrentes, como se o cinema fosse uma longa conversa que nunca acaba, apenas muda de tom e de direção.
É isso que "Sacavém" mostra de forma exemplar: o cinema de Pedro Costa como um sistema de ecos, de repetições, de objetos que regressam carregados de memória. Um "realismo assombrado"- realismo porque os objetos são reais, assombrado porque eles carregam fantasmas.
Júlio Alves não fez um making-of, nem um retrato biográfico, nem uma hagiografia. Fez uma investigação sobre como o cinema se constrói através da materialidade - e sobre como certos objetos, quando tocados pelo cinema, deixam de ser apenas coisas para se tornarem presenças, memórias, fantasmas. É um filme pequeno, modesto, rigoroso. E absolutamente necessário para quem quer compreender não apenas o que Pedro Costa filma, mas como e porquê.

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