sexta-feira, novembro 21, 2025

A intangibilidade dos sonhos

 

Personagens à procura de superarem as atuais limitações, eis o que constato em dois filmes hoje visitados. As dificuldades são imensas, o pretendido sonho ou a urgente catarse uma miragem que chega a ser vista como intangível.

Em "À Chegada" (2022), de Alejandro Rojas e Juan Sebastián Vásquez - ambos venezuelanos na estreia como realizadores de longa-metragem -, Diego, um arquiteto urbanista venezuelano, e Elena, uma dançarina contemporânea espanhola, planeiam começar uma nova vida e constituir família nos EUA. Trocam Barcelona por Nova Iorque com os vistos aprovados. Mas ao chegarem ao aeroporto de Newark, são detidos para serem interrogados. A princípio inócuas, as perguntas dos agentes tornam-se cada vez mais intimidantes, transformando-se numa situação kafkiana onde Diego e Elena ficam com a sensação de estarem a ser vítimas de uma armadilha.

O filme, com apenas 74 minutos, é um thriller político intenso, claustrofóbico, passado quase inteiramente em espaços irrespiráveis de controlo aeroportuário. Baseado em testemunhos reais, critica os padrões duplos das políticas de imigração e da burocracia americanas. Os desempenhos são de facto muito competentes - Alberto Ammann e Bruna Cusí, nos papéis principais, oferecem interpretações contidas que captam o nervosismo crescente da situação sem nunca cair no exagero. Ben Temple e Laura Gómez, como os agentes interrogadores, completam um elenco que funciona quase como um relógio de precisão.

O que desconcerta é o desenlace. Perante tudo quanto decorrera até então - a tensão acumulada, a violência psicológica, a humilhação burocrática -, a resolução surge no mínimo inesperada, quase como se o filme não soubesse bem como sair da armadilha que tão bem construíra. Ainda assim, o mérito está na capacidade de manter a tensão durante esses menos de uma hora e meia, sem nunca sucumbir à tentação de quebrar a verosimilhança.

Diego e Elena querem radicar-se na América das supostas oportunidades. Descobrem, à entrada, que essas oportunidades vêm acompanhadas de um sistema de controlo, vigilância e humilhação que transforma o sonho americano numa distopia burocrática. O filme mostra isso com eficácia perturbadora.

"Na Mata dos Medos" (2024), de António Borges Correia, segue Alice (Anabela Brígida), uma realizadora de cinema recentemente viúva que agarra a única estrutura que possui: um projeto de filme-ensaio sobre os primeiros amores, dependente de financiamento. Usa o guião do novo filme como escape ao luto e à solidão. De repente entramos noutra dimensão, noutro lugar, e sem aviso prévio estamos no filme idealizado pela realizadora - um "filme dentro do filme" que espelha a própria fragilidade de "Na Mata dos Medos".

Filmado em Arcos de Valdevez - o terceiro filme do realizador no concelho -, o filme tem a seu favor as paisagens da região e, ainda, da nossa muito frequentada Mata dos Medos. Venceu o Prémio do Público no FESTin. Mas concordo com a crítica severa de Luís Miguel Oliveira: bem-intencionado na conceção, existe uma fragilidade evidente no resultado. "Bloqueado num borrão narrativo a carecer de definição", ele dá-lhe apenas uma estrela. Ademais algumas das interpretações teriam carecido de uma melhor direção de atores - ao contrário do que acontece em "À Chegada", onde todos os desempenhos funcionam.

“Na Mata dos Medos” fica preso entre o retrato realista da precariedade da produção cinematográfica portuguesa e a meditação sobre o luto - e acaba por não ser plenamente nenhuma das duas coisas.

O que une "À Chegada" e "Na Mata dos Medos", para além de terem sido vistos no mesmo dia, são os fios condutores comuns: as dificuldades em que se veem os personagens a contas com dificuldades difíceis de serem superadas, e unidos pela ideia de cumprirem os sonhos. Diego e Elena querem atravessar uma fronteira geográfica para recomeçar. Alice quer atravessar a fronteira do luto através da criação artística. Uns enfrentam a burocracia americana, outra enfrenta a burocracia do financiamento cultural português. Em ambos os casos, o sistema - seja ele o controlo fronteiriço, seja a máquina de produção cinematográfica - revela-se hostil, imprevisível, kafkiano.

A diferença está na execução. "À Chegada", com todos os seus defeitos (incluindo esse desenlace desconcertante), funciona como thriller tenso e claustrofóbico. "Na Mata dos Medos", apesar das boas intenções e das belas paisagens, perde-se na fragilidade estrutural. Mas ambos deixam a mesma sensação: a de que os sonhos - seja o de recomeçar numa terra prometida, seja o de fazer cinema como catarse - são cada vez mais intangíveis num mundo onde as fronteiras (geográficas, burocráticas, económicas) se multiplicam em vez de se dissolverem. 


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