sábado, novembro 15, 2025

A espessura de um mundo salvo do esquecimento

 

Não será propriamente um acaso que os nossos melhores amigos sejam transmontanos. Provavelmente por existir no seu ser uma personalidade riquíssima, que justifica a empatia em nós suscitada. E por trazerem consigo um imaginário, que o filme de António Reis e Margarida Cordeiro explora de forma tão estimulante.

"Trás-os-Montes" é um filme, que revisito sempre que possível por conter tantos estímulos à medida que o revejo, agora sem a Elza, que nele também encontrava prováveis ecos das origens beirãs, sempre para ela de tão insistente curiosidade.

Esta docuficção de 1976, realizada, escrita e produzida por Reis e Cordeiro, é a primeira longa-metragem de uma trilogia que incluiria "Ana" e "Rosa de Areia". Filmada com atores não-profissionais, habitantes de localidades em Bragança e Miranda do Douro, ao longo de quase dois anos de imersão total naquelas aldeias, "Trás-os-Montes" é o que António Reis definiu como "um filme sobre erosão" - não no sentido do que se perde, mas no que resiste ao olhar turístico, ao olhar compassivo, ao olhar exterior que tudo simplifica.

Luís Miguel Oliveira nota, com muita perspicácia, que o filme está menos interessado no que "muda" do que no que "persiste". E é verdade: bastam aqueles planos do pastor, miúdo sem tempo e sem idade, a reproduzir gestos quotidianos que acreditamos repetirem-se há séculos ou milénios, para que essa sensação se torne cristalina. Há um tempo em "Trás-os-Montes", mas esse tempo não passa - antes se acumula, como se a região fosse um património onde nada substitui nada e tudo fica cravado, integrado, na terra e na paisagem. Incluindo os habitantes.

Na entrevista que António Reis concedeu a Serge Daney para os Cahiers du Cinéma em Maio de 1977, o cineasta afasta-se de qualquer leitura que queira enquadrar o filme no contexto do pós-25 de Abril. Quando Daney comenta a ausência da Igreja Católica no filme, Reis responde que ele e Margarida adotaram "uma posição de tábua rasa" em relação às instituições. O catolicismo, ali, é "uma religião muito recente". O que o filme sente é a presença de religiões mais antigas: "Não é exagero nem liberdade poética dizer que são druidas. Se os ouvisses a falar das árvores, e de como eles as amam…"

É esta conjugação que o filme opera: a coexistência entre uma realidade que começa por ser física, definida, humana e social, e estende-se de maneira a incorporar uma dimensão mítica, ancestral. Margarida Cordeiro nasceu na parte mais violenta do Nordeste e ainda guardava memória "do gosto do vinho, das lendas e dos pesadelos da infância". Tudo isso tornou-se matéria com uma certa espessura que vemos no ecrã quando os transmontanos não são filmados como vítimas de coisa nenhuma, mas como seres humanos com uma verticalidade absoluta, donos de um saber e de uma relação com o mundo que escapa às leis da capital, às leis da modernidade.

Em voz-off, Reis e Cordeiro adaptam passagens de Kafka e do poeta chinês Po Chü-i, traduzidas para o subdialeto gutural do Nordeste. A leitura do texto kafkiano que diz "longe da capital, longe da lei" não poderia ser mais eloquente: Trás-os-Montes surge como lugar impenetrável, de certa forma imune a uma mudança imposta do exterior. Como diz Reis na conversa com Daney: "Se lemos uma paisagem apenas do ponto de vista da 'beleza', é muito pouco; mas se pudermos ler ao mesmo tempo a beleza da paisagem, o aspeto económico da paisagem e da geografia política da paisagem, tudo isto é a realidade da paisagem."

É por isso que há mais vida do que morte em "Trás-os-Montes". O plano da família a comer neve é um plano de vida, não de morte. E é por isso também que o filme consegue restituir aos transmontanos uma dignidade que nunca é proclamada, apenas mostrada - na relação com as árvores, com os animais, com os gestos ancestrais que resistem ao tempo porque não estão no tempo: estão fora dele, ou antes, contêm todos os tempos simultaneamente.

Luís Miguel Oliveira termina o seu texto afirmando que talvez só dois filmes tenham, depois deste, sido capazes de lhe "responder" no plano da ética e da estética: "No Quarto da Vanda" de Pedro Costa e "Sicília!" de Straub e Huillet. Subscrevo inteiramente. São filmes que partilham essa mesma recusa do olhar compassivo, essa mesma capacidade de filmar pessoas e paisagens como totalidade indivisível, essa mesma consciência de que o cinema pode ser um ato de resistência - não contra o que muda, mas a favor do que persiste, do que resiste, do que permanece quando tudo à volta parece conspirar para o seu desaparecimento.

Revejo "Trás-os-Montes" e penso nos amigos transmontanos, na Elza a procurar ecos das suas origens beirãs, nessa personalidade riquíssima que não se explica apenas pela geografia ou pela história, mas por essa espessura de que falava Reis - a espessura do mito, da lenda, do pesadelo, do vinho, da neve comida em família. A espessura de um mundo que o cinema, felizmente, conseguiu salvar do esquecimento. 

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