Na segunda metade dos anos setenta fiquei fascinado ao ver "O Amigo Americano" que, quase meio século depois, continua a ser o meu Wenders preferido. Daí surgiu a vontade de ler quase tudo quanto Patricia Highsmith escrevera, mas sobretudo conhecer a obra do realizador nas suas reviravoltas surpreendentes, na diversidade que nela se estabeleceu.
O documentário de Marcel Wehn, "Wim Wenders, le mouvement perpétuel" (O Movimento Perpétuo), ajuda a compreender essas reviravoltas - que começam nas ruínas de uma Alemanha derrotada.
Wenders nasceu em 1945 em Dusseldorf, no meio dos escombros físicos e morais do pós-guerra. Essa origem marca tudo o que viria a fazer: um cinema de errância, de personagens deslocadas, de geografias atravessadas como se fossem mapas interiores.
Jovem, numa voracidade cinéfila quase delirante, Wenders viu mais de mil filmes num só ano na Cinemateca Francesa. Essa imersão total no cinema dos outros preparou-o para encontrar o seu próprio.
"Alabama", o primeiro filme em 1969, ainda era tentativa, procura. Mas com "Alice nas Cidades" encontrou finalmente o tipo de cinema que lhe interessava fazer - essa poesia contemplativa que Sebastião Salgado, no documentário, identifica como indissociável da própria pessoa de Wenders: "Ele, em si, é também um personagem." E é verdade. Há qualquer coisa de wendersiano nos próprios filmes de Wenders - uma forma de olhar o mundo com paciência, com atenção aos detalhes banais que de repente se tornam epifânicos, com uma melancolia que nunca descamba em desespero.
Depois veio Hollywood, e o inevitável conflito. "Hammett" foi o projeto que o pôs em rota de colisão com os estúdios, revelando a natural incompatibilidade entre o seu método e as exigências da máquina industrial americana. Embora viesse depois a rodar "Paris, Texas", fê-lo como se fosse um filme europeu - rodado em território americano, mas com alma e método deste lado do Atlântico. A diferença é palpável: "Paris, Texas" respira, deixa os planos durarem, confia no silêncio e na paisagem tanto quanto nos diálogos. É um filme de errância e redenção que só Wenders poderia ter feito naquele contexto.
"Asas do Desejo", o filme seguinte, situa-se nos antípodas. De volta a Berlim, ao contexto expressionista alemão, Wenders faz um filme sobre anjos - e a provocação é deliberada: a Alemanha capaz de produzir anjos depois de ter gerado monstros. É um gesto de reconciliação com a história, com a memória, com a própria possibilidade de beleza e transcendência numa cidade (e num país) ainda marcados pela divisão e pelo passado sombrio. Os anjos de Wenders não são celestiais: são testemunhas terrestres, compassivas, capazes de ouvir os pensamentos dos humanos e de se comoverem com a sua fragilidade.
Mas o período norte-americano levou-o também a rodar filmes menos amados pelos seus cultores, como foi o caso de "The Million Dollar Hotel". Wenders reconhece no documentário que deu maior atenção à intriga - de que se sentiu prisioneiro - do que aos atores, invertendo aquilo que sempre fora a sua força. É uma confissão importante: mostra um cineasta consciente dos seus desvios, das armadilhas em que caiu ao tentar conciliar o inconciliável.
Mais recentemente, Wenders voltou ao que sempre soube fazer melhor nos filmes dedicados a Pina Bausch, Sebastião Salgado ou Anselm Kiefer. Não são documentários convencionais - são interrogações sobre como surge a obra de arte, o processo criativo, a relação entre o artista e o mundo.
Em "Pina", a dança de Bausch torna-se cinema através do olhar de Wenders. Em "O Sal da Terra", a fotografia de Salgado ganha uma dimensão narrativa e temporal que só o cinema permite. Em "Anselm", a pintura monumental de Kiefer é filmada como paisagem viva, em mutação constante.
O que une todos estes filmes - desde "Alice nas Cidades" até aos retratos recentes de artistas - é esse movimento perpétuo de que fala o título do documentário de Wehn. Wenders nunca parou, nunca se fixou, nunca repetiu fórmulas. Errou, certamente. Perdeu-se em Hollywood, provavelmente. Mas continuou sempre em movimento, sempre à procura dessa imagem justa, desse plano que dura o tempo certo, dessa contemplação que não é passividade mas atenção máxima ao que existe.
Continuo a preferir "O Amigo Americano", com a sua Hamburg noturna e a sua Paris outonal, com Dennis Hopper e Bruno Ganz a construírem uma estranha amizade entre um vigarista e um homem condenado. Mas compreendo melhor, graças ao documentário de Wehn, que esse filme não é um acidente isolado na filmografia de Wenders - é uma das muitas estações de um movimento perpétuo que começou nas ruínas de Dusseldorf e continua, filme após filme, a interrogar o mundo através do cinema.
E que continua ainda hoje. "Perfect Days", o seu filme mais recente, prova que Wenders mantém, ao fim de tantos anos, a capacidade de conceber obras com uma empatia intensa pelos seus personagens. Um homem que limpa casas de banho em Tóquio e encontra beleza nos pequenos rituais quotidianos - eis o tipo de história que só Wenders sabe filmar assim, com essa atenção compassiva ao banal que se torna extraordinário. O movimento perpétuo não parou. E, felizmente, ainda não acabou.

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