quinta-feira, novembro 13, 2025

As Rainhas-sacerdotisas de Creta

 

Um documentário recente, Reines-prêtresses de Crète, demonstra a surpreendente inversão de perspetivas que a arqueologia às vezes impõe. Há muito que a civilização minoica alimenta imaginações, mas raramente a vimos sob esta luz tão particular: um mundo onde as mulheres emergem em primeiro plano — literalmente — enquanto as figuras masculinas parecem recuar para a margem da ação.

Nos frescos minoicos, de cores tão vivas que quase parecem pintados ontem, as mulheres não são adereços: dançam, conduzem rituais, ocupam o centro das cenas, dominam o olhar. O documentário insiste nesse detalhe como quem destapa uma evidência há muito ignorada. Mais impressionante ainda é a figura feminina sobredimensionada descoberta em Santorini, colocada no centro de um ritual de adoração. O tamanho não é casualidade: é hierarquia. Ali, o divino e o feminino parecem interligados de modo indissociável.

Mas o fascínio aumenta quando essa iconografia cruza-se com as narrativas posteriores. Minos, o grande rei de Creta, é uma figura ambígua, mais mito do que homem, talvez sequer um indivíduo, mas um título repetido ao longo de gerações. Arthur Evans, que escavou Cnossos e cunhou o termo “minoico”, projetou naquelas ruínas o mito grego do labirinto e do seu rei austero. Contudo, o documentário — e parte da investigação recente — sugere que esta imagem régia masculina talvez encubra uma organização muito mais matizada, onde o poder circulava entre esferas espirituais femininas e funções administrativas ou comerciais tendencialmente masculinas.

A sociedade minoica, longe de ser um matriarcado simples, parece antes um campo de forças repartidas. As mulheres surgem como sacerdotisas, condutoras de ritos iniciáticos, guardiãs de um culto virado para a natureza, para o ciclo, para a fertilidade — dimensões-chave de uma religiosidade que os arqueólogos descrevem como marcadamente matriarcal. Já os homens ocupam espaços do comércio, da gestão prática do palácio, e partilham com as mulheres o exercício da política.

O que impressiona não é apenas o protagonismo feminino, mas a impossibilidade de separarmos mito, poder e imagem. A Creta minoica surge, então, como uma cultura onde o feminino não precisava de se impor: estava lá, visível, central, estruturante. Talvez estejamos apenas a recuperar, com atraso de três milênios, a capacidade de ver o que sempre esteve pintado à superfície do fresco.

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