domingo, novembro 23, 2025

Isabel Allende, a escritora do exílio

 

Não sinto pela obra de Isabel Allende o entusiasmo que quase todas as obras de Gabriel García Márquez ou Pablo Neruda me suscitam. Mas, pelo seu posicionamento cívico, coloco-a num patamar muito acima de Vargas Llosa que, bom escritor de facto, nunca deixou de me suscitar as reservas inerentes à sua deriva para a direita, que o tornou quantas vezes execrável. Da obra de Allende posso reconhecer o prazer que me deram A Casa dos Espíritos ou o muito íntimo Paula, mas surpreenderam-me pela negativa os romances destinados a um público juvenil.

É justamente por isso — por esta oscilação entre fascínio e reserva — que o documentário Isabel Allende, l’écrivain de l’exil, de Christoph Goldmann, se torna tão estimulante. Obriga-me a deslocar o olhar, não para as hesitações estilísticas ou para os excessos melodramáticos de que às vezes a autora é acusada, mas para o solo profundo de onde brota a sua escrita. Ao seguir Allende na dupla condição de exilada e militante, o filme revela o que talvez seja a verdadeira coerência subterrânea da sua obra: a necessidade de dar voz aos deslocados, aos expulsos, aos que transportam na memória uma pátria perdida.

Com alguma surpresa, percebe-se na serenidade das suas palavras a ferida ainda aberta de 1973. O exílio é apresentado não como uma etapa biográfica, mas como matriz moral: uma bússola que orienta não só os romances, mas também a sua ação pública, hoje dedicada à defesa dos migrantes. A câmara capta esta coerência ética sem retórica: não há panfleto, mas a convicção tranquila de quem viveu na pele aquilo que narra. Torna-se claro que o romance familiar, o realismo mágico e a militância social não são compartimentos estanques; são diferentes aproximações à mesma pergunta: como se vive com aquilo que nos é arrancado?

A presença de especialistas como Michi Strausfeld ajuda a reinserir Allende no panorama hispano-americano, afastando a leitura simplificadora que a reduz a uma autora “para grandes públicos”. O documentário recorda que a popularidade não implica superficialidade — e que o que mais resiste na sua obra não são os artifícios narrativos, mas a insistência moral em manter vivo tudo o que o exílio tenta apagar.

Ao acompanhar o seu percurso, reencontro as minhas reservas iniciais — mas também descubro uma nova camada de compreensão. Não porque o documentário procure tornar Allende numa escritora que não é, ou porque exija um entusiasmo que não sinto, mas porque a devolve ao seu eixo humano, histórico e político. É aí que ela revela uma grandeza que a literatura, mesmo quando imperfeita ou desigual, não pode dispensar: a grandeza de quem escreve não para glorificar a própria voz, mas para restituir a outros a possibilidade de serem ouvidos. 

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