Desde a adolescência que, havendo oportunidade, vejo dois ou mais filmes no mesmo dia. Muitas vezes eles são tão diferentes, que os estímulos suscitados são divergentes, mesmo sem complementaridade. Eis o que constato ao ver na mesma madrugada o "Hammett" de Wim Wenders (que muito me agradou) e o "Parthenope" de Paolo Sorrentino (que muito me enfadou).
"Hammett" (1982) não é um Wenders ao seu estilo habitual - aliás, a produção conturbada do filme é bem conhecida: Francis Ford Coppola, produtor executivo, ficou insatisfeito com a versão original e quase todo o filme foi refilmado, levando a alegações de que grande parte seria dirigida pelo próprio Coppola. Wenders nega, e o que restou parece ainda assim mais dele do que de Coppola, embora moldado segundo uma fé artística que este defendia na época.
Mas é uma bela homenagem ao cinema negro norte-americano. Passado em 1928, o filme segue Dashiell Hammett (Frederic Forrest), escritor de ficção policial reformado da agência Pinkerton, a viver num apartamento barato em São Francisco, a lutar contra os pulmões doentes e o gosto pela bebida, escrevendo todos os dias à máquina. Quando o velho colega Jimmy Ryan (Peter Boyle) aparece pedindo ajuda para encontrar uma prostituta chinesa desaparecida no bairro de Chinatown, Hammett vê-se arrastado de volta à vida que tentara deixar para trás.
O filme mergulha-o num ambiente próximo dos seus romances - que adorei ler há umas quantas décadas. A corrupção da classe dominante e a forma como controla a polícia é uma evidência que atravessa toda a narrativa. Os personagens são perversos, gananciosos, corruptos: em suma, é uma América sem nada a ver com a dos sonhos e das oportunidades. A São Francisco de "Hammett" é toda filmada em estúdio, com sets elaborados que recriam o final dos anos 1920 - uma opção estética deliberada que reforça o carácter de homenagem ao film noir clássico.
A perversão sexual está lá, claro - prostituição de menores, chantagem, filmes pornográficos, assassinatos para encobrir escândalos. Tudo controlado pelos poderosos, tudo protegido pela polícia corrupta. Hammett descobre em primeira mão as personagens e a tela para os seus futuros triunfos literários como "O Falcão Maltês", e descobre dentro de si as sementes de Sam Spade. É um filme sobre como a vida alimenta a arte, sobre como o crime real se transforma em ficção policial. E funciona, apesar de toda a conturbação da produção, como um noir elegante, controlado, sem excessos formais.
"Parthenope" (2024), de Paolo Sorrentino, é outra coisa completamente diferente. Apresentado em Cannes em competição pela Palma de Ouro, o filme segue a vida de Parthenope (Celeste Dalla Porta), nascida em Nápoles em 1950, desde a juventude solar dos anos 1960 e 1970 até à velhice no presente. Parthenope - cujo nome evoca a sereia da mitologia grega que deu nome à antiga cidade que precedeu Nápoles - é uma mulher de beleza tão deslumbrante que as pessoas param para a olhar.
Mas Parthenope parece-me uma "allumeuse" que capricha em seduzir sem dar de si a essência. Por isso a dizem uma diva. Todos os homens à volta a desejam - incluindo o próprio irmão, numa relação incestuosa que o levará ao suicídio. Ela sente-se sobretudo atraída pelo escritor John Cheever (Gary Oldman), assumido homossexual, numa relação impossível que sublinha o carácter inalcançável da personagem.
O filme está cheio de cenas em câmara lenta, canções xaroposas sobre o amor, planos contemplativos do mar de Nápoles. Tudo isto lembra um certo cinema soft porn dos anos 70 cheio de pretensões, como o eram os filmes de David Hamilton - aquela estética de beleza juvenil fotografada através de filtros suaves, onde a forma sufoca qualquer substância.
Sorrentino, obcecado com a juventude e a beleza feminina (como já demonstrara em "A Grande Beleza" e "Youth"), parece aqui expor os limites da sua imaginação ao tentar criar uma protagonista feminina. O resultado é uma personagem cuja única característica definitória é a beleza e o facto de todos os homens vivos - irmão e padres incluídos - quererem ter sexo com ela.
A ligação Eros-Thanatos fica garantida pela sedução pelo tema do suicídio sobre o qual Parthenope queria escrever a tese de Antropologia. O que fazer? O que ser? A hipótese de tornar-se atriz vê-se contestada por uma velha e infeliz atriz que vem a Nápoles vituperar tudo quanto de mal tem a cidade. Parthenope acaba por seguir a via académica, tornando-se professora, mas o filme nunca consegue dar-lhe verdadeira profundidade. Fica beleza vazia, contemplação sem substância, Nápoles filmada como postal ilustrado.
Curiosamente, a perversão sexual acaba por ser um tema comum aos dois filmes, embora tratada de formas radicalmente diferentes. Em "Hammett", a perversão liga-se à corrupção do poder - prostituição infantil, chantagem, pornografia usada como arma de controlo político. Em "Parthenope", surge na cena do sexo entre dois jovens de duas famílias influentes da cidade, que têm de dar evidência da sua relação a muitos espectadores - uma performance sexual como ritual de classe, tão obscena na ostentação quanto os crimes escondidos de São Francisco.
Mas enquanto Wenders usa a perversão para denunciar um sistema corrupto, Sorrentino parece simplesmente fascinado por ela, transformando-a em mais um elemento decorativo dessa Nápoles excessiva e decadente que filma com deleite esteticista.
No final, são dois filmes que não dialogam entre si. Wenders faz uma homenagem funcional, quase austera, ao film noir - um exercício de género bem conseguido, rodado em estúdio com economia de meios. Sorrentino faz uma celebração solar e excessiva da beleza napolitana - câmara lenta, música melosa, fetichização da protagonista.
Um mostra a América suja, corrupta, longe dos sonhos e das oportunidades. O outro mostra uma Itália bela, decadente, vazia de sentido. Um funciona apesar das limitações de produção. O outro falha apesar de todos os recursos ao dispor. "Hammett" agradou-me pela sua honestidade de propósitos. "Parthenope" enfadou-me pela sua pretensão oca.
Dois filmes na mesma madrugada. Dois estímulos intelectuais divergentes. Nenhuma complementaridade, nenhuma contradição. Apenas a constatação de que o cinema pode ser muitas coisas - e nem todas merecem duas horas e dezassete minutos do nosso tempo.


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