O documentário Piero della Francesca, pionnier de la Renaissance italienne de Marion Kollbach reconstitui a viagem de um homem que, nascido por volta de 1412 no seio de uma família de modestos comerciantes de couros, veio a tornar-se um dos arquitetos visuais da modernidade. Piero não surge, como tantos outros mestres do seu tempo, moldado pela tradição de uma grande corte ou oficina prestigiosa. Surge da província, da vida comunitária dos pequenos burgos toscanos — e talvez por isso tenha percebido cedo que a pintura não podia permanecer confinada à condição artesanal que herdara.
A sua biografia é feita de deslocações. Viajou por toda a Itália, absorvendo as cores e as realidades políticas de cada cidade, pintando para cortes rivais, reinventando a maneira como o espaço podia ser representado. Cada viagem foi também um laboratório: Piero procurava compreender o mundo antes de o pintar. É com esse espírito — parte científico, parte humanista — que compõe o seu Tratado sobre a perspetiva, uma obra decisiva que dá à pintura aquilo que faltava: uma estrutura racional, mensurável, quase arquitetónica. Para Piero, a arte não é mero gesto, mas uma forma de conhecimento. As linhas de fuga são pensamentos; a geometria, uma ética visual.
E no entanto, esse rigor nunca lhe retirou humanidade. A Madonna do Parto, exposta numa pequena capela rural, tornou-se ponto de peregrinação para mulheres grávidas que viam na serenidade da figura um amparo real. A pintura, nessa comunidade, não era ornamento: era presença, bênção, quase uma entidade protetora. A força espiritual das suas figuras nasce precisamente desse equilíbrio improvável entre o cálculo e a devoção.
O documentário sublinha também o seu domínio absoluto da cor — uma sobriedade carregada de ressonância, onde cada tom parece conter uma respiração. O seu mundo pictórico é feito de luminosidade controlada, de figuras silenciosas que existem num tempo suspenso. Essa tensão entre contenção e intensidade explica, talvez, porque Pasolini, no seu Evangelho segundo São Mateus, citou diretamente a composição de muitos dos seus quadros: Piero oferece uma espécie de realismo sagrado que une austeridade e transcendência.
As cenas históricas obedecem a uma unidade aristotélica exemplar: tempo, lugar e ação convergem, sem dispersão nem hesitação. Nada é supérfluo; nada é decorativo. Cada gesto tem um peso, cada rosto uma função, cada sombra uma lógica interna. A pintura de Piero parece existir num presente contínuo, quase litúrgico, onde o olhar é convidado a permanecer.
No fim, o documentário revela não apenas um pioneiro da perspetiva, mas um artista que quis pensar a pintura como ciência e revelação ao mesmo tempo. Nasceu entre peles e couros, mas fez da luz o seu verdadeiro material. E, cinco séculos depois, continua a ensinar-nos que o mundo pode ser redesenhado — desde que o saibamos ver.

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