O cinema documental dos anos 70 em Portugal, e particularmente Máscaras (1976) de Noémia Delgado, coloca-nos perante um paradoxo fundamental: como preservar a memória de tradições ancestrais sem romantizar as estruturas de poder e exclusão que estas frequentemente perpetuam?
Máscaras surgiu num momento crucial, documentando celebrações do Ciclo de Inverno no Nordeste Transmontano que se encontravam em vias de extinção. A emigração masculina, a escassez de máscaras e trajes, a erosão progressiva do significado original destes rituais – tudo apontava para o fim iminente destas práticas centenárias. O cinema assume aqui uma função arquivística insubstituível: fixa para a posteridade gestos, cantos, movimentos e códigos sociais que de outra forma se perderiam irremediavelmente.
A câmara de Delgado capta não apenas a superfície folclórica das festividades, mas também a relação profunda com o quotidiano das comunidades, revelando como estes rituais estruturam o tempo, organizam as hierarquias sociais e fornecem significado à existência coletiva. Neste sentido, o filme é um ato de resistência contra o esquecimento, um testemunho da riqueza simbólica de culturas populares marginalizadas pela modernização.
Delgado não se limita ao registo observacional: seguindo a tradição de Jean Rouch, recorre à "recriação possível", como nas imagens finais em Bragança que fazem renascer os rituais da quarta-feira de cinzas. Esta intervenção não é inocente: ao encenar tradições já desaparecidas, o cinema não apenas documenta, mas ativamente revitaliza e transforma o que filma. A câmara torna-se agente de mudança, não mero espelho passivo.
Este gesto ambíguo – entre cientificidade etnográfica e criação artística – revela a impossibilidade de uma representação neutra do real. O cinema antropológico português dos anos 70 assume assim, conscientemente ou não, um papel performativo na construção da memória cultural nacional.
Mas preservar não pode significar acriticamente celebrar. As mesmas tradições que Máscaras tão belamente documenta são também sintoma e instrumento de estruturas sociais profundamente arcaicas. Os rituais do Ciclo de Inverno são, como o próprio filme atesta, "profundamente masculinos" – um eufemismo que mal disfarça a realidade da exclusão sistemática das mulheres.
Nas aldeias filmadas por Delgado, as mulheres surgem frequentemente como figuras de fundo, espectadoras passivas de celebrações que consagram a virilidade e o poder masculino. Enquanto os homens mascarados ocupam o espaço público com seus corpos grotescos e transgressores, às mulheres resta o papel de testemunhas silenciosas, confinadas à esfera doméstica e aos cuidados. Esta divisão não é acidental: é a própria estrutura da ordem patriarcal rural, sancionada pela repetição ritual através dos séculos.
O fenómeno da emigração, referido no texto introdutório como fator de declínio das tradições, merece também leitura mais complexa. A partida dos homens jovens esvazia as aldeias dos protagonistas destas festas, mas deixa também "para trás os idosos, as mulheres e as crianças" – linguagem que inadvertidamente revela como estas populações eram já entendidas como secundárias, permanecendo enquanto os "verdadeiros" agentes (os homens em idade produtiva) partiam.
Máscaras, filme realizado por uma mulher pioneira no cinema português, torna esta ausência particularmente eloquente. Noémia Delgado, que trabalhou num meio cinematográfico esmagadoramente masculino, escolhe documentar práticas rituais de onde as mulheres são estruturalmente excluídas. Esta escolha não é necessariamente contraditória: pode ser lida como um ato de evidenciar, pela própria documentação, os limites e exclusões dessas tradições.
O olhar da câmara, conduzido por Delgado mas apontado para rituais masculinos, expõe involuntariamente a natureza excludente dessas celebrações. Quando os mascarados invadem as ruas, quando celebram a passagem para a idade adulta, quando encenam a morte e o renascimento – fazem-no num espaço do qual metade da comunidade está simbolicamente banida. A preservação destas práticas pela documentação cinematográfica levanta assim uma questão desconfortável: estamos a preservar cultura ou a mumificar opressão?
As festas de inverno documentadas em Máscaras remontam a "eras longínquas", a "tempos que precedem o cristianismo". Mas o arcaico não é necessariamente o autêntico, nem o antigo o verdadeiro. Estas tradições cristalizaram-se em formas específicas através de séculos de dominação patriarcal, católica, feudal. O que vemos não é uma janela para um passado puro, mas o resultado sedimentado de múltiplas camadas de poder e exclusão.
O movimento antropológico do cinema português dos anos 70 desenvolve-se, não por acaso, no período pós-revolucionário. Há neste momento histórico uma urgência em recuperar a "portugalidade" das margens, as culturas populares sufocadas pelo centralismo salazarista. Mas há também o risco de, nessa recuperação, perpetuar as hierarquias e violências simbólicas que essas mesmas culturas incorporam.
Como preservar sem fossilizar? Como documentar sem legitimar? Máscaras não resolve esta tensão – e talvez não deva. A força do filme reside precisamente em tornar visível este dilema. Ao mostrar a beleza estética e a riqueza simbólica destas celebrações, simultaneamente revela (a quem quiser ver) as exclusões que as estruturam.
O papel do cinema na preservação das tradições ancestrais não pode ser o de um conservadorismo acrítico. Deve antes ser o de uma preservação dialética: documentar com rigor, mas sem abdicar do olhar crítico sobre as relações de poder que essas tradições naturalizam. Preservar a memória, mas não a opressão. Celebrar a criatividade popular, mas não as hierarquias que esta cristaliza.
Noémia Delgado, mulher a filmar um universo masculino, ocupa uma posição de outsider privilegiada. Ao contrário de um realizador homem, não pode nunca ser plenamente "um deles", não pode participar sem distância nos rituais que documenta. Esta exterioridade – potencialmente uma limitação – torna-se talvez a condição de possibilidade de um olhar mais crítico.
Máscaras preserva para o futuro tradições preciosas e ameaçadas. Mas preserva também, ainda que inadvertidamente, o testemunho de estruturas sociais que urgia transformar. Décadas depois, o filme permanece documento valioso – não apenas das festas que regista, mas do próprio olhar de uma época sobre si mesma: um olhar dividido entre a nostalgia do comunitário rural e a consciência emergente das suas violências constitutivas.
No final, Máscaras não nos oferece respostas confortáveis. Não nos diz se estas tradições deviam ser preservadas ou transformadas, celebradas ou ultrapassadas. Mas ao tornar visíveis tanto a sua riqueza simbólica quanto as suas exclusões estruturais, o filme permite-nos a nós, espectadores do século XXI, formular as questões certas.
Qual o valor de uma tradição que exclui sistematicamente metade da comunidade? Como honrar a memória cultural sem perpetuar as injustiças que esta incorpora? Que futuro queremos para as práticas ancestrais num mundo que reconhece, ou deveria reconhecer, a igualdade de género como valor inegociável?
Máscaras, pela sua própria existência, pela escolha de Delgado em documentar este universo, pela tensão entre beleza formal e exclusão social que atravessa cada plano, não resolve estas questões. Mas tem a honestidade de as colocar – e nisso reside, talvez, a sua maior contribuição para pensarmos o papel do cinema na preservação crítica da memória coletiva.

Sem comentários:
Enviar um comentário