terça-feira, agosto 01, 2023

Irrepetíveis gestos partilhados

 

1. Que mistérios escondem os espaços por trás das portas de um qualquer quarto de hotel onde nos alojemos? É esse o tema de Montevideu, o romance de Enrique Vila-Matas iniciado ainda antes da pandemia e só concluído quando ele recuperava da transplantação do rim a que se sujeitou.

Igualmente exercício de escrita - é ele quem assume a literatura como facto maravilhoso de a linguagem não ser algo que reproduz a realidade, antes qualquer coisa que a constrói e desconstrói, que a faz e desfaz com uma inevitável subjetividade (Visão, 13/7/2023) - este é um dos romances por que sinto maior curiosidade de entre os recém-publicados entre nós.

2. Bucara é uma das muitas cidades que nunca visitarei com a Elza. E, no entanto, acaso não tivéssemos o futuro cerceado pela sua doença, quanto teria exultado excursionar pelas principais escalas da Rota da Seda. Porque se a mais mediática, e também uzbeque, Samarcanda funcionaria como objetivo prioritário desse incumprido desejo, esta menos conhecida paragem das caravanas do passado também mereceria uma visita.

Ao ver um documentário sobre o passado e, sobretudo, o presente da que foi a região natal do sábio Avicena, posso imaginar o prazer que daria a descoberta dos trabalhos artesanais dos miniaturistas apostados em perpetuarem a tradição sufi dos persas, das bordadeiras dos sofisticados tecidos usados nos grandes acontecimentos da vida dos seus clientes, ou dos ferreiros ocupados na criação de punhais com lâminas resistentes a todas as vicissitudes a que pudessem ser submetidos. Uma vida é tão curta para o quanto nela poderíamos experienciar.

3. A Elza já não pôde concluir a leitura do último romance, que me começou a ler em voz alta: O Reino do Dragão de Ouro da Isabel Allende. Escolhêramo-lo por ter intriga fácil sem elucubrações psicológicas, que as limitações da doença tornassem incompreensíveis.

Ficámos a meia centena de páginas do fim que, agora sozinho, concluí com a sensação de cumprir uma tarefa partilhada encetada há umas semanas. E com a embargada comoção de saber irrepetíveis os gestos, que nos foram tão comuns durante quase meio século de vida a dois. Porque a evolução da doença assim o dita! 

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