domingo, agosto 13, 2023

Um centenário, que me passa quase ao lado

 

Foi pelo vómito de Luis Pacheco contra Cesariny, que dei pela existência deste, quando a adolescência me poderia predispor para a irreverência libertária do artista de quem agora se comemora o centenário do nascimento.

A Revolução de Abril, quase a seguir, suscitou-me profunda antipatia por ele: não o soube a colaborar com os jornais mais anticomunistas desse período - O Dia ou O Diabo? Foi fácil assumir na altura a atitude arrogante da juventude de nem conhecer, nem gostar do que assinava, quer como poeta, quer como artista plástico. Na época estava decididamente ao lado dos neorrealistas atirando os surrealistas para o outro lado da barricada político-ideológica.

As décadas subsequentes suavizaram-me as firmes convicções e, embora nunca tenha simpatizado com o papa Breton, passei a olhar com interesse as vanguardas que tinham dado à Revolução Bolchevique as mais interessantes propostas estéticas. Delas tinham emergido as outras, as do século XX, mormente esse surrealismo, que era outro programa ideológico de transformar o mundo.

Foi por ela inspirado que Cesariny criou as sismografias, que reproduziam na folha de papel sobre os joelhos os rabiscos do lápis impulsionado pelos solavancos do elétrico. Ou as soprografias criadas pelas manchas de tinta insuflada na tela, os escorrimentos lavados com água, ou ainda o uso dado às borras do café, à areia, à terra e outros materiais, que ia associando a colagens e outros métodos, até então nada canónicos, para representar o que trazia na mente.

Por essas obras e pelos poemas, que lhe descubro no Manual de Prestidigitação (1956) e Pena Capital (1957), assumo alguma atenção futura para quanto está a ser agora celebrado na exposição Mário Cesariny: Em todas as ruas te encontro inaugurada em Famalicão. Mas, por razões várias, sei que não me deslocarei a vê-la, passando-me assim quase ao lado.

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