segunda-feira, outubro 04, 2021

Feliz como Lázaro, Alice Rohrwacher, 2018

 

Da Bíblia sabemos ter sido Lázaro de Betânia o amigo que Jesus terá ressuscitado,  Perante um título como o deste filme de Alice Rohrwacher ficamos à espera de algo que se relacione com essa alusão e não ficamos defraudados: a meio o jovem protagonista, tombado de um precipício, acorda para a sua segunda vida, uns quantos anos passados sobre a primeira. Mas, porque a história passa-se na Itália atual, vemo-nos no universo de um realismo mágico onde uma aldeia pode ficar presa no tempo sem que os habitantes disso se apercebam ou a música de uma igreja evade-se do seu órgão para acompanhar o personagem, que tanto parece ter características de tonto, quanto de atávico bondoso e de santo.

Às tantas, se começáramos por evocar os filmes de Ermanno Olmi quanto à caracterização da Itália rural, lembramo-nos de Kusturica no seu melhor, quando a magia tomava conta da realidade e acedia os personagens à felicidade plena quando ela lhes pareceria tão distante. Embora sem a música balcânica, que tanto ajudou a encantar-nos com o universo criativo do realizador jugoslavo (e não apenas sérvio!).

Há a exploração feudal de camponeses, que não têm consciência dos seus direitos, a decadência de uma aristocracia sem escrúpulos que busca na sociedade industrializada a sobrevivência do seu estatuto, uma intermediação oportunista de quem é lobo de uns e cordeiro de outros e uma constatação de quanto a modernidade recusou a justiça e a igualdade para os que nela não vislumbraram sequer a existência de um qualquer mirifico ascensor social. A crueldade feudal mescla-se com a urbana e nenhuma hipótese de sobrevivência subjaz a quem não sabe nem pode sentir senão uma enorme estranheza com os mecanismos do poder num e noutro contexto.

Talvez não justificando o fervor crítico de quantos dele se encantaram em Cannes na edição de 2018 do Festival, «Feliz como Lázaro» não deixou de constituir agradabilíssima descoberta. 

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