O tema da traição merece-me sempre reticências quando tende a heroicizar a figura do delator e o dá como arrependido da organização de que saiu. O caso mais sinistro foi o de Elia Kazan e desse vómito de filme intitulado Há Lodo no Cais - que pena ver Marlon Brando associado a tal projeto! - pelo qual procurou explicar-se de ter destruído a vida de tantos antigos amigos e de suas famílias ao conotá-los com o Partido Comunista durante a caça às bruxas do início dos anos 50.
Convenhamos que, entre o arrependimento de um ex-comunista e o de um mafioso a distância é de monta, podendo aceitar-se neste aquilo que ao outro sempre repudiaremos. Um denunciou quem era «criminoso» pelas suas ideias, o segundo pelos seus atos. Daí ter começado a ver O Traidor de Marco Bellocchio (2019) com algumas reservas, apesar de o reconhecer como um dos mais estimáveis cineastas de quantos se mantêm em atividade no cinema transalpino.
As reticências foram-se esboroando à medida que a história se desenvolveu, remetendo-me para uma época terrível em que os juízes italianos - Giovanni Falcone e Paolo Borsellini - conseguiram dar forte machadada na Cosa Nostra, mas alguns colegas seus (mormente Di Pietro) muito contribuíram para favorecer a ascensão de Berlusconi ao lançarem uma campanha anticorrupção capaz de destruir os partidos tradicionais - nomeadamente o Socialista - mas de premiar os que mais a personificavam.
Embora Tommaso Buscetta nos surja, amiúde, como um “homem de honra” - e esse é o argumento, que o leva a entregar os antigos cúmplices a quem não reconhece igual mérito, é o próprio Falcone quem lhe destrói essa imagem ao conotá-lo com aquilo que sempre foi: um assassino sem escrúpulos. E, se tivéssemos dúvidas sobre o pensamento de Bellocchio a respeito do seu protagonista a cena final tira qualquer dúvida remanescente. Ou seja um traidor é sempre um crápula, mesmo quando a sua perfídia acaba por favorecer o interesse social.
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