Remetido Takeshi Kitano para obra cada vez mais esporádica e devolvida ao universo dos yakusas, é Kore-eda o realizador japonês cujos filmes mais me interessam atualmente. Não só porque a abordagem das famílias atuais assume dimensão universal, mas também por não se eximir de denunciar a deriva ultraliberal do seu país, sobretudo a partir do modo como os governos de Shinzo Abe precarizaram os empregos e deram machadada fatal no que restava dos direitos laborais.
Em Shoplifters conhecemos uma família nada tradicional, constituída por um casal, uma avó e um filho adotivo a que se junta uma outra miúda, ainda mais nova, recolhida na rua, porque negligenciada pelos seus verdadeiros pais. Nenhum deles tem laços biológicos com os demais, mas todos criam empatias fortes, demonstrativas de como o conceito de família a eles não se podem cingir. Naquela casa situada num dos mais pobres bairros de Tóquio persiste aquela beleza antiga de coabitarem três gerações sob o mesmo teto criando uma espécie de oásis indiferente à selva urbana, que domina lá fora. Dela retiram a magra pensão da velha anfitriã, os proventos de trabalhos precários em que não existe qualquer proteção para os acidentes deles colhidos e o que conseguem surripiar nos pequenos roubos em que o pai e os miúdos se especializam. Uma vez por ano vão ao mar num momento de rara, mas superlativa felicidade.
Sabermos que, hoje em dia, 40% dos empregos no Japão, obedecem a essa lógica ultraliberal de não comportarem qualquer garantia para quem os desempenha, e explica que o governo de Abe e os seus apoiantes tenham ficado incomodados com o filme e, sobretudo, com a Palma de Ouro por ele recebida em Cannes. Até porque o ilusório suporte garantido pelas nossas sociedades judaico-cristãs - a caridadezinha ao jeito das tias Jonets - não existe na cultura nipónica: um pobre, um sem abrigo, é abandonado à sua «sorte», porque não teve «mérito» para escapar a esse «destino». A brutalidade dos patrões japoneses é impiedosa, sendo os mais velhos, as mulheres e as crianças as suas maiores vítimas. Não é por acaso, que são essas as categorias sociais mais glosadas nos personagens do filme.
Não deixa de ser curioso o processo criativo de Kore-eda, que relativiza a importância do argumento e faz da rodagem um contínuo work in progress em que os atores são chamados a colaborar, incumbindo-se dos seus próprios diálogos e modelos de interpretação. A ideia geral vai sendo trabalhada e é assim que chegamos ao desiderato em que, morta a avó e enterrada clandestinamente para não ficarem em causa os proventos colhidos da sua reforma, a família se estilhaça. Aparentado com o cinema social de Ken Loach, Kore-eda assume não conseguir uma tão demarcada estratificação entre explorados e exploradores, porque a sociedade em que vive tem uma complexidade, que escapa aos nossos cânones ocidentais.
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